alineaimee 31/03/2014A civilização do espetáculo, de Vargas Llosa - um comentário necessário, ainda que superficial e incoerente
A civilização do espetáculo - Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, de Mario Vargas Llosa, já vinha chamando a minha atenção há algum tempo, tanto pelo título quanto pela capa bonita. Estava curiosa para saber se ele dialogaria com A sociedade do espetáculo, do Guy Debord, e acabei comprando há umas duas semanas. Ele menciona, de fato, o texto de Debord, como também revisa brevemente as teses de T. S. Eliot, em Notas para uma definição de cultura, de George Steiner, em No Castelo do Barba Azul: Algumas notas para a redefinição de cultura, e de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, em A cultura mundo. Resposta a uma sociedade desorientada, e comenta brevemente alguns trabalhos de Foucault, Marshall McLuhan e Nicholas Carr.
Adentrei o livro às escuras, considerando que nunca lera nada do autor, e, apesar de notar uma série de falhas no texto, tenho de admitir que sua escrita é elegante e refinada. É uma pena que a revisão da edição brasileira tenha deixado passar alguns erros.
A civilização do espetáculo é um ensaio, entremeado com alguns artigos que Llosa publicara em jornais. Sua tese inicial é a de que a cultura, como entendida tradicionalmente, acabou e foi substituída por uma pós-cultura rarefeita, banalizada, uma cultura que preconiza o mero divertimento. Llosa descreve a cultura tradicional como:
(...) uma soma de fatores e disciplinas que, segundo amplo consenso social, a constituíam e eram por ela implicados: reivindicação de um patrimônio de ideias, valores e obras de arte, de conhecimentos históricos, religiosos, filosóficos e científicos em constante evolução, fomento da exploração de novas formas artísticas e literárias e da investigação em todos os campos do saber. (p.59)
Segundo o autor, acontecimentos como a segunda guerra, o advento das mídias audiovisuais, a globalização e o fortalecimento da democracia liberal, bem como a revisão do conceito de cultura pela antropologia, que passou a considerá-la de maneira mais genérica como a "soma de crenças, conhecimentos, linguagens, costumes, indumentária, usos, sistema de parentesco, em resumo, tudo o que um povo diz, faz, teme ou adora" (p.60) contribuíram para o seu gradativo empobrecimento, restringindo-a à função meramente lúdica.
A cultura foi perdendo seu poder de base moral e de estímulo à reflexão para a ser associada a tudo aquilo que diverte, distrai, entorpece.
Duas razões determinantes para essa transformação seriam o enfraquecimento das religiões, às quais a cultura estaria fortemente ligada de início, e a democracia liberal, que busca reduzir tanto quanto possível as diferenças sociais. Na primeira situação, o indivíduo perde o arcabouço que o leva a optar por uma postura de correção, idoneidade e civilidade, que a cultura e o progresso científico não têm dado conta de substituir. No segundo quadro, perde-se a hierarquia do saber, que permitia o aprofundamento intelectual e que contava com autoridades (escritores, críticos) capazes de nortear as escolhas gerais dos indivíduos. Atualmente, os críticos e teóricos não exercem real influência sobre as massas e o estudo aprofundado restringe-se à academia, tendo pouca reverberação na vida social. A globalização da cultura permite que mais pessoas sejam alfabetizadas e tenham maior acesso à informação, mas não garante que elas consumam o que há de melhor em literatura, música, ou artes plásticas, até porque o valor estético dos objetos de arte foi substituído, nesse novo cenário, pelo valor de mercado.
Quando Llosa afirma que a cultura está empobrecida, que o avanço científico-tecnológico substituiu o interesse pelas questões intelectuais, que o valor de mercado sobrepujou o valor estético, que o marketing e a ludicidade tomaram o lugar da seriedade e da profundidade, ele está corretíssimo. Seus diagnósticos são precisos e acertados. A cultura bufonesca (que eu informalmente costumo chamar de "poética publicitária", "poética da sacadinha" ou "império do marketing"), onde escritores e políticos destacam-se pela comédia, pela fofoca, pelo bas-fond, está mais do que patente para quem emprega um mínimo de reflexão acerca da nossa época. No entanto, falta, ao texto de Llosa, uma investigação real, detida sobre as causas dessa rarefação. Nesse sentido, o subtítulo "radiografia do nosso tempo e da nossa cultura" é bem acertado, porque o ensaio não passa de um retrato, não avança além do comentário superficial.
Outras questões, mais problemáticas, são as sugestões paradoxais que o escritor oferece para os dilemas apontados. Num determinado momento, ele defende fortemente a laicidade do estado e a restrição completa da religião ao âmbito privado, como a proibição do uso de burcas em lugares públicos, ou do uso de crucifixos na decoração de prédios públicos. Ocorre que, ao mesmo tempo, Llosa afirma que o estado deve incentivar a vida religiosa do cidadão porque esta favorece a conduta idônea, a correção do caráter e o fortalecimento da moral. O escritor chega a propor o ensino religioso na escola pública, numa perspectiva de reconhecimento cultural e fomento da tolerância. Ora, parece-me um tanto irreal que o estado consiga, de forma coerente e eficaz, incentivar uma prática que se empenha em coibir. Do mesmo modo, parece-me ilusório crer que o indivíduo possa se submeter, igualmente, a duas morais distintas. O que tenho visto é que, quanto mais crente é o indivíduo, mais propenso ele está a valorizar a moral religiosa. Um exemplo são as constantes campanhas cristãs contra políticas de legalização do aborto, de uso de contraceptivos e do casamento homossexual.
Outro problema não resolvido no texto de Llosa é esse saudosismo das hierarquias culturais, esse anseio pelo retorno da figura do crítico como alguém dotado de influência. Como o autor mesmo aponta, a condição possível para que essa hierarquia se mantenha é a hierarquia social — algo que a democracia liberal, de que Llosa é partidário, pretende, teoricamente, banir. Sendo a posição político-econômica do autor a que exalta a equivalência entre indivíduos e que propaga o livre comércio, o único valor possível para os objetos é o de mercado, ou seja, o que atende às solicitações da massa. Só para fazer um contraste, T. S. Eliot, que o autor cita logo no início do livro, buscava ser o mais coerente possível em seu diagnóstico a respeito da cultura: definia-se como "um anglo-católico em religião, um clássico em literatura e um monarquista em política". Chamem-no de antiquado e elitista, mas nunca de incoerente. Não dá é para ficar em cima do muro ou mudar de critérios segundo a conveniência, como Llosa faz.
As posições paradoxais do autor, no entanto, indicam certo laivo de otimismo que eu, particularmente, não tenho. Sem querer me aprofundar em questões políticas, creio que a forma de governo em que vivemos é preferível a qualquer outra inventada, mesmo que a cultura precise ser nivelada por baixo. A democracia está longe de ser perfeita, mas é o sistema político menos nocivo no que diz respeito às liberdades individuais. Para nós, que apreciamos a arte com um mínimo de profundidade e valor estético, talvez só reste mesmo vivê-la na obscuridade a que foi reduzida, nos pequenos grupos e na academia, como "dinossauros de terno e gravata", para usar uma expressão do próprio autor.
Postas as incongruências do texto, eu não diria que A civilização do espetáculo é um livro de todo dispensável. Se não resolve ou aprofunda as questões que levanta, ao menos convida à reflexão. E é muito bem escrito.