Lucas 27/02/2022
Militarismo e política: O início do abrigo encontrado pela caserna no Poder Executivo brasileiro
O golpe militar ocorrido no Brasil entre março e abril de 1964 foi um movimento único não só dentre os vários momentos de "fraturas" históricas nacionais ocorridas ao longo do século XX como também de outros processos revolucionários globais importantes. Mas o que tornou a tomada do poder pelos quartéis, derrubando o presidente civil João Goulart (1919-1976) tão destacável, foi um caráter curioso: o movimento não elevou um nome de destaque, alguém que teve os holofotes revolucionários todos para si durante o processo de derrubada do regime anterior. Foi um processo coletivo, protagonizado pelos comandos militares como uma resposta aos "ameaçadores" movimentos esquerdistas do presidente João Goulart.
Entretanto, um nome emergiu desse movimento como aglutinador do militarismo, da política e dos ditos civis: o marechal cearense Humberto de Alencar Castello Branco (1897-1967), um dos articuladores do golpe militar de 1964 e primeiro presidente do regime, que durou mais de duas décadas. E para trazer mais luz à trajetória deste brasileiro tão importante para a história nacional (a qual é inegavelmente relegado a um papel secundário nos livros de história geral), o também cearense Lira Neto (1963-) escreveu a biografia do seu conterrâneo, lançada pela editora Companhia das Letras em 2004.
Castello – A Marcha para a Ditadura foi a primeira obra a seguir o padrão Lira Neto" de qualidade biográfica, a qual se consolidou posteriormente com as biografias da cantora Maysa (2007), de Padre Cícero (2009) e a espetacular biografia em três partes de Getúlio Vargas (2012 a 2014). O estilo de escrita do autor notabiliza-se por uma forte vertente literária: seus livros são biografias, mas Lira Neto consegue com maestria biografar com pontuais toques literários, que exprimem ação e emoção nos lances decisivos da vida do biografado. E ele faz isso com uma sutileza que precisa ser estudada, a qual não carrega o texto com qualquer viés pessoal que o autor pode desenvolver. Lira Neto sabe como poucos respeitar a distância entre biógrafo e biografado, mas quando ele transpõe esta linha o faz com o intuito de tornar o texto mais literário e menos jornalístico, correspondendo a um movimento genial que prende a atenção do leitor.
E falando em movimentos decisivos, a vida de Castello Branco foi cheia deles. Filho de um militar, Castello e o restante da sua família passaram boa parte da sua vida seguindo os passos do pai, frequentemente transferido de quartel para quartel. Mas foi no Rio de Janeiro que o biografado fixou residência, especialmente quando assumiu o cargo de diretor da Escola de Comando Estado-Maior do Exército (ECEME) após ter se tornado um herói de guerra da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que lutou ao lado dos Aliados na Segunda Guerra Mundial no norte da Itália. Extremamente inteligente, Castello Branco, inicialmente um militar puro, que não admitia interferências militares na administração do país, foi seduzindo-se pelos desmandos civis ocorridos no pós-guerra, especialmente com a inacreditável renúncia de Jânio Quadros (1917-1992), a qual durou sete meses na presidência e as posteriores ebulições causadas por João Goulart e seu discurso radicalmente reformista.
Lira Neto, entretanto, sabe dosar bem estes movimentos decisivos. Aproximadamente metade da obra ocupa-se em debater a participação (aparentemente discreta, mas politicamente robusta) de Castello Branco no golpe militar de 1964 e seu posterior mandato presidencial. Parte significativa das páginas retrata um sujeito conservador, que prezava pelos valores familiares, presença assídua na Igreja (ele e a família eram católicos fervorosos), normalmente de bom-humor, mas sem ser irreverente e uma admiração digna de nota para com a esposa, a mineira Argentina Vianna (1899-1963), a qual não chegou a ver o marido na presidência. No geral, Lira Neto pinta um biografado com momentos simpáticos mas que, como presidente, frustrou grande parte do apelo civil em torno do seu nome (políticos como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitscheck e Ulysses Guimarães foram a favor de sua indicação à presidência).
Tal frustração não atingiu apenas Castello Branco, mas sim praticamente toda a sociedade civil brasileira, que via nos militares um escudo necessário contra o "fantasma" do comunismo, simbolizado por João Goulart. Se Castello Branco atraiu boa parte da opinião pública para a necessidade do golpe em 1964, foi ele também, com suas ações e omissões quem afastou boa parte deste respaldo público e midiático. Quando ele deixa a presidência, em março de 1967, é triste seu estado de solidão, política e literalmente falando. Importante destacar que Castello, e Lira Neto descreve isso formidavelmente, não foi um mero inocente neste processo de subserviência à chamada linha dura: os quatro primeiros Atos Institucionais, instrumentos legais que regulavam as atrocidades militares, foram assinados por Castello Branco; a Constituição Federal de 1967, a qual perdurou até 1988, feita às pressas e com enormes falhas, também deu-se durante o seu mandato. Várias cassações importantes foram assinadas pelo primeiro presidente do regime militar: o esfacelamento do Congresso Nacional deu-se a partir de suas canetadas.
Apesar disso, o grande equívoco de Castello Branco foi ter cedido a chamada linha dura, simbolizada aqui pelo general gaúcho Arthur da Costa e Silva (1899-1969), a qual, sucedendo a Castello na presidência, instalou um regime ditatorial puro, simbolizado pelo brutal Ato Institucional nº 5 (AI-5), baixado em 1968. Mas este movimento passivo também precisa ser compartimentalizado: os militares, financiados e incentivados por norte-americanos, diga-se, era quem davam as cartas e a vitória da linha dura, por meios pacíficos ou não, seria inevitável.
De todo modo, Castello conviveu e protagonizou inúmeros dilemas típicos da mistura entre caserna e palácios presidenciais: a relação conflituosa com a imprensa, as táticas de desinformação e distorção, o apego a métodos de ensino que desfavoreciam as ciências humanas, a disseminação do ódio a discursos reformistas, o patrocínio ao combate à uma organização comunista global que está a espreita para dominar o planeta e distorcer os valores familiares, sociais e cristãos, entre outros sintomas típicos de quem acha que o exercício do poder é uma ferramenta que deve ser exercida unilateralmente, sem diálogo com partes discordantes. Tais elementos conferem à biografia escrita por Lira Neto um desagradável verniz de atualidade.
Castello – A Marcha para a Ditadura é um livro excelente naquilo que se propõe: narrar a vida de um dos brasileiros que melhor simbolizaram a mistura entre quartéis militares e poder executivo e das consequências, positivas e negativas, que advém desta junção. Apesar das visíveis falhas de caráter do biografado, a narrativa de Lira Neto faz de Castello Branco (especialmente com o misteriosíssimo acidente aéreo que o vitimou quatro meses após deixar a presidência) uma figura que precisa ser mais estudada e valorizada, seja pela sua coragem e inteligência militares (comprovadas na Segunda Guerra Mundial), seja nas perfídias e acertos em sua curta vida política.