Anatomia dos mártires

Anatomia dos mártires João Tordo




Resenhas - Anatomia dos Mártires


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Higor 24/03/2016

Causas e consequências de uma vida em sacrifício
Estou completamente apaixonado pela coleção Novíssimos. A coleção não é perfeita, longe disso, mas, apesar de algumas leituras densas, outras arrastadas e a maioria (ainda bem!) incríveis, estou completamente fascinado por autores estreantes com livros fantásticos e alguns mais consolidados que eu não conhecia, e que são muito bons. Assim que concluir essa, irei me aventurar na coleção 'Otra Língua'.

Anatomia dos Mártires não tem somente o título incrível, mas a maneira de contar a história, principalmente da política portuguesa, é de maneira sublime, limpa, que, apesar de não querer fazer com que o leitor conheça a história geral do país, é boa o suficiente para situá-lo sem gerar o enfado que era quase certo.

Melhor ainda, conhecemos a história de Catarina Eufêmia, uma mulher que se tornou um mártir em uma luta especifica em Portugal. O interessante é descobrir quem foi Catarina, até porque ela realmente existiu! Então, por favor, nada de olhar no Google antes ou durante a leitura, porque a gente vai conhecer cada detalhe no livro.

Partindo da premissa maravilhosa e inédita para mim do que é um mártir e como a sociedade vê as atitudes dessas pessoas, o autor conta a história de um jornalista fraco que tem a oportunidade de brilhar. Partindo daí ele aborda a história de um mártir recente que a sociedade não entende suas atitudes, e, querendo fazer um bom serviço, fez uma extensa pesquisa, que inclui a jovem Catarina. O problema é que o jornalista cavoucou demais na polêmica portuguesa e seu artigo causou sérios problemas.

A história aparenta ser bem bobinha, mas, sério, que livro incrível! João Tordo tem mais livros publicados aqui, que quero ler com urgência. O autor conta uma história tão gostosa em apenas três capítulos (isso mesmo, três capítulos) que seria facilmente estragada em mãos erradas.

Temos tanta coisa boa aqui: a política portuguesa abordada de maneira magistral; a opinião publica sobre um acontecimento, e como cada um tem sua opinião e quão odiosa ela pode ser, quando não se sabe a procedência, e como uma pessoa não se importa com o que opina, se pode machucar, ou sem se importar em saber diferenciar um texto de seu profissional, ou com a vida privada de um jornalista ou qualquer outro profissional.

Enfim, eis aqui mais um livro incrível de uma coleção mais fabulosa ainda! é um prazer ver que os contemporâneos portugueses são tão bons, e que, se procurarmos com atenção, encontraremos autores como eles em nosso país.
Karamaru 07/08/2019minha estante
Sobre a coleção "Novíssimos", quais os títulos mais chamaram sua atenção?




Jacque Spotto 22/04/2021

ANATOMIA DOS MÁRTIRES - João Tordo

Anatomia dos Mártires é um livro que traz várias reflexões sobre a ideia de um mártir,
através de um paralelo entre a trabalhadora do campo, Catarina Eufémia, morta em 1954
por um Tenente da GNR (Guarda Nacional Republicana) de Portugal e o cenário do
personagem do romance que está inserido no início da crise europeia (2009) em Portugal.

E nesse plano de fundo histórico se encontra a ânsia de um jornalista lisboeta em ser
reconhecido, assim, escreve um artigo um tanto quanto polêmico, a partir da entrevista do
escritor de um livro biográfico que acabara de ser lançado sobre um homem que saltara de
um edifício abraçado com seu manuscrito. Com essa entrevista, o jornalista (no livro ele não
é nomeado) vê uma chance de impressionar seu editor, Cinzas, um velho comunista
português, produzindo um artigo em que faz uma comparação do personagem do livro do
biógrafo com a mártir comunista portuguesa, Catarina Eufémia, e de certa forma colocando
o status de mártir e de vários outros em dúvida.

"Queria dar-lhe algo tão inesperado que lhe fosse impossível vetar a minha legítima
ambição de ganhar um nome naquela casa". (p. 29)

A partir da publicação de seu artigo, ele passa a ter problemas com seu pai, um músico
aposentado que vê no trabalho escrito pelo filho uma busca inescrupulosa e reacionária de
ganhar notoriedade através da minimização da luta dos integrantes comunistas da época
ditatorial, pois foram eles, junto com a população, que lutaram para instaurar a democracia
no país. Seu artigo também causa uma comoção para algumas pessoas, acarretando ao
jornalista uma certa paranóia em acontecimentos que passam a rodeá-lo.

"... o leitor dos jornais, será levado a concluir que a redução da importância de um fato ou
acontecimento: oblitera-se a realidade para fugir a uma verdade desconfortável". (p. 85)

O livro traz a questão da responsabilidade de uma pessoa em tratar de assuntos que
possam induzir outras ao negacionismo, ainda mais de uma parte sofrível como a Ditadura
Salazarista em Portugal. Não que um bom jornalista não deve expor a verdade, mas ela
deve vir acompanhada de um pensamento crítico e não somente uma forma de polemizar
sem trazer nenhum benefício. Não simplesmente recortar um fato que convêm e distorcê-lo
para mera concordância do que se precisa. O que foi o que o jornalista fez, ele não
conhecia a história de Catarina, como também não tinha nem mesmo lido o livro do biógrafo
o qual baseou seu artigo.

"... sabia somente o que precisava saber para conseguir, com o meu artigo, desmanchar a
realidade e transformá-la de acordo com a minha conveniência". (p.114)

O livro não é um manifesto a favor de nenhum partido político ou ideológico, mas ele elucida
como um grupo pode se utilizar de um fato ou mais precisamente, de uma pessoa
específica e criar ao seu redor um mito, um ícone, uma ação heróica a ser exaltada e
glorificada.

No próprio livro, o jornalista, após escrever o artigo, se vê pensativo e passa a
fazer pesquisas sobre a história de Catarina, e esses livros que ele utiliza para suas
pesquisas também são os mesmos em que o próprio escritor João Tordo utiliza em sua
Bibliografia de "Anatomia dos Mártires''. João Tordo fez diversas investigações com
professores e também entrevistas para buscar informações do que teria acontecido a
Catarina e também um pouco de sua vida pessoal, que é algo que praticamente só se sabe
pelos relatos de alguns conhecidos da época.

No romance, o jornalista se vê rodeado de informações desencontradas, e meias-verdades
que se chocam com relatos e com as notícias do meio de comunicação da época, um meio
de comunicação que era praticamente administrado pelo Governo do Estado Novo. Então,
não se sabe ao certo se algumas informações foram alteradas, tanto pelo Regime Ditatorial
quanto pelo Partido Comunista, ambos tentando utilizar do fato ocorrido, de um lado para
denunciar o Governo Ditatorial Salazarista e do outro lado para amenizar o crime ocorrido
contra Catarina. Há no mínimo em torno de 50 páginas que trata somente da História da
trabalhadora.

"Não se trata de Esquerda ou Direita, trata-se da questão da clandestinidade e da maneira
como a informação circula nessas condições". (165)

De todas as formas, com alguns fatos obscuros ainda em torno do ideal heróico de
Catarina, há de se afirmar que era uma mulher que trabalhava no campo, que tinha 3 filhos
e buscava junto aos outros trabalhadores uma condição melhor de salário para poder ajudar
no sustento da família e que foi morta covardemente pelo tenente da GNR. Mas o que um
ideal pode alterar na biografia de uma pessoa? que de mãe, esposa e trabalhadora,
torna-se, a partir do momento de um crime, um símbolo de luta e se transmuta em uma
pessoa totalmente forte e livre de medos, como uma líder que o Partido necessitava na
época e ainda hoje é um dos símbolos da luta do povo rural.

O que separa a pessoa do
mártir? E ainda mais, o que faz dela, e não tantos outros que também foram mortos de
maneira cruel pelo Regime, escolhida para se tornar esse ícone?
Qualquer um que se apossa das lembranças de uma pessoa, e se ancora a ela para exaltar
uma forma de Ideologia, religião, política ou qualquer outro grupo tem o direito a isso? No
caso de Catarina, ela nem mesmo pôde ser enterrada em sua cidade inicialmente, somente
depois da queda do regime ditatorial que ela foi transferida de Quintos para Baleizão. No
romance, o jornalista tem uma conversa com um morador da cidade de Catarina e ele relatacomo o marido da mártir, Carmona, se sentiu na época, não há como afirmar se é um relato
real ou apenas um diálogo romanesco:

"O Carmona dizia sempre que, a ele, nunca lhe perguntaram nada. Eu, cá para mim,
quando for desta para melhor, quero ser enterrado ao lado da minha mulher. O Carmona
nem isso podia, porque a mulher está enterrada em Baleizão, naquela sepultura com uma
lápide que tem uma foice e um martelo e fala das lutas e dos comunistas e dos fascistas,
sem uma palavra para a família. Não fala dele nem dos filhos, de nada do que interessa às
pessoas enquanto estão vivas. Digam-me lá: você gostava de ser enterrado ao lado de uma
coisa daquelas?" (p.202)

A importância coletiva para um estado de bem maior seria uma justificativa para tal ato?
Algo que deva ser lembrado talvez não deva ser desmistificado para não ruir uma base que
foi construída para uma causa que significa acabar com algo que aflige uma sociedade?
Não que um mártir não tenha feito algo que deva ser exaltado, mas toda causa necessita de
um ícone para não ser esquecido?

Só sei que terminei esse livro com mais dúvidas do que quando comecei rsrsrs. Muito
interessante esse contexto histórico que permeia a vida do personagem, nos faz ficar
também curiosos por mais informações sobre essa figura portuguesa que se tornou um
símbolo de luta no país. Há poemas, músicas, livros a seu respeito, e mesmo assim paira
algumas questões que se perderam na própria história e talvez nunca conseguiremos
recuperar.

Anatomia dos Mártires
João Tordo
Editora: Leya
Coleção: Novíssimos
2013

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Emanuel 31/08/2017

Sobre a força das mitologias políticas.
O autor intercala, malandramente, um evento fictício de martírio religioso contemporâneo no enredo como abre alas para a questão que vai ser apresentada ao leitor: mitologias políticas.
A coisa é mais interessante ainda porque está toda centrada em uma personagem não fictícia abatida pela forcas de repressão do regime salazarista.
Com este expediente diversos leitores encontrarão meios para expandir os aspectos da construção dos cultos dos mártires apresentados na narrativa para diversos outros casos de culto. Na verdade, em nossa época, quando a vítima torna-se o modelo ético que se impõe, é difícil não encontrar paralelos durante a leitura do livro do português João Tordo.
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marcioenrique 16/03/2020

"...Se o comunismo é a mãe das utopias políticas e a utopia é irrealizável nesta vida, então um bom comunista é um comunista morto. Será que o mesmo não se aplica aos mártires, ou a qualquer um que reivindique a encarnação de um ideal, por definição impossível de concretizar? Talvez a morte seja uma benesse para estes e outros mártires; talvez o melhor seja estarem mortos e irremediavelmente calados..." (p. 58)
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