Leonardo 13/08/2013
Sem Sal...
Esta será uma resenha – ou comentário, ou crítica – com um gosto bem pessoal e amargo, mas falarei disso daqui a pouco. Por ora, devo dizer que nunca havia ouvido falar de Leticia Wierzchowski, mas, claro, já havia ouvido sobre A casa das sete mulheres, apesar de não ter visto a série nem ter lido o livro.
Sal, seu mais novo romance, conta a história de uma família que vive há mais de sessenta anos numa pequena ilha, onde tomam conta de um farol. Ivan é o terceiro representante da família Godoy que assume o comando do farol. Ele casou com Cecília e juntos tiveram seis filhos: Lucas, Julieta, Orfeu, Eva, Flora e Tiberius. O livro acompanha a história desses e de outros personagens, recorrendo a diversas vozes e diversas perspectivas que se entrelaçam, sempre girando em torno do mar (e do vento, e da areia, e do farol) e da literatura.
Antecipo meu descontentamento: ler Sal foi uma das minhas experiências mais frustrantes como leitor. Procuro ser bastante criterioso com os livros que leio, e o motivo que me levou a escolher esse foi a propaganda da Intrínseca: o primeiro livro de ficção nacional publicado pela editora. Ora, se é o primeiro de muitos, o que todos esperamos, a editora deve ter sido bastante criteriosa, e o livro deve mesmo valer a pena.
O que encontrei? A preocupação mais evidente da autora é com os personagens. Eles são a alma do livro. Mais do que uma história de fatos, é uma história de personagens. Só que eles não convencem! A autora apoia-se em clichês para descrever cada um, a começar pelos irmãos: Flora é a leitora voraz, que passa dias e noites mergulhadas nos livros; Orfeu é aquele com alma de artista, e que tem um fogo que o consome por dentro; Eva é a devoradora de homens, a Lilith; Tiberius é o menino que ama as estrelas e tem estranhas premonições; Lucas é o mais velho, aquele que em (quase) tudo lembra o pai, Ivan; Julieta, por conta de uma doença, não fala e tem suas noites assombradas pelo fantasma da avó paterna. É como se essas informações fossem suficientes para determinar o futuro, as ações, os pensamentos de cada um!
Cada um dos filhos – e mesmo o pai e a mãe – têm direito a voz, narram alguns capítulos intercalados do livro, cada um representado por uma cor. Vemos a autora descrever fisicamente cada um, dizer do que eles gostam, dizer o que eles fazem, dizer o que eles pensam, mas eles mesmos não fazem nada. Não sei fui claro. Os personagens não ganham vida, é isso. O tempo todo você parece estar lendo o livro diretamente da tela do notebook, sobre o ombro da autora, enquanto ela digita. Em nenhum momento eu me desliguei, eu mergulhei na ficção. Sal não me convenceu, não me conquistou.
Por que isso não aconteceu? Má vontade minha? Não, sinceramente.
Começou com os personagens, como já falei. Mas não é só isso. O livro é narrado a partir de diversos pontos de vista, algo como Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso, ou Enquanto Agonizo, de Faulkner. As semelhanças com esses dois livros não param na forma. A queda de uma família, as revelações sobre as pequenas e grandes intrigas, os segredos revelados. Em Crônica da Casa Assassinada, a narrativa compreende anos e anos. Em Enquanto Agonizo, a narrativa compreende a viagem para enterrar a mãe morta. Em ambos, entretanto, os personagens são reais e os fatos são convincentes. Há vida, dor, emoção. Em Sal, muito se promete e pouco se cumpre. Ou, quando se cumpre, a autora entrega no momento errado, revelando uma falta de timing comprometedora.
Explico: o livro é dividido em três partes. A primeira ocupa mais de metade do livro, e é nela que os retalhos de história são mais evidentes. Flora, a leitora compulsiva, escreveu um livro sobre sua família e, por algum motivo fantástico e inexplicável, o que ela escreveu se tornou real (ela antecipa isso no primeiro capítulo, não estou entregando nenhum spoiler aqui). Essa é uma grande promessa desde o início da narrativa. A autora provoca a curiosidade do leitor o tempo todo, colocando na boca dos diversos personagens referências ao momento em que o que Flora escreveu se torna real, para tragédia da família Godoy. Esperamos, e esperamos, e esperamos. Enquanto esperamos, vamos lendo os retalhos, capítulos curtos, nos quais Ivan, o pai, se apresenta, e diz como ele é e um pouco do que pensa. Depois é a vez de Cecília, depois Tiberius, depois Eva, volta a Flora, depois Orfeu, e assim, cada personagem pensa, reflete, descreve-se. A ação acontece devagar, quase parando, e por conta da escolha multivoz da autora, há muita, muita repetição. A impressão que tive até perto do final da primeira parte (ou seja, até metade do livro) é que eu estava assistindo ao primeiro capítulo de uma novela, um capítulo especial, mais longo, em que todos os personagens são apresentados, em que há uma tentativa de apresentar alguns fatos básicos que comporão o background de cada um, fatos que explicarão como eles agirão e reagirão no futuro, ao longo dos outros duzentos capítulos da novela. Aí você chega ao final da primeira parte e a novela acaba! O clímax aconteceu em algum ponto no final da primeira parte. Digo algum ponto, porque ele foi dissolvido no multidiscurso, nas multivozes. Aí começa a segunda parte e parece que a autora esqueceu que havia prometido muito em relação ao milagre do livro que se torna vida. É como se a segunda parte tivesse sido escrita depois, a continuação desnecessária da novela. Se na primeira parte, faltavam fatos, na segunda e terceira partes, eles abundam. Atropelam-se. Parece que havia um limite de páginas, ou que a autora já não tinha paciência e queria terminar o livro o quanto antes. Há momentos em que se narravam as viagens de dois personagens. Um dia aqui, outro acolá, como notícias de um jornal. Volto mais uma vez: a autora atribuía ações àqueles personagens literários. Não era algo que eles tivessem feito, mas algo que ela disse que eles fizeram.
Ainda sobre a narração multivoz: a autora tenta dar uma voz distinta a cada personagem, o que leva a situações constrangedoras, de tão artificiais. O momento mais embaraçoso é certamente quando ela resolve entregar um capítulo a Julieta, a moça com uma espécie de paralisia cerebral. Impossível não lembrar de Faulkner e não corar.
Eu não queria usar o trocadilho infame, mas concordem comigo: é inevitável.
Sal deve ser o livro mais sem sal que eu já li na vida.
Com isso eu preferiria encerrar esta resenha, mas afirmei algo no início e preciso abordar este assunto. Disse que este seria um texto com um gosto amargo e pessoal.
Aspiro a ser escritor. E quando digo ser escritor, não digo ter um livro publicado, mas escrever bem, bem mesmo.
Há um ano, mais ou menos, terminei o que poderia chamar de minha primeira novela, ou meu primeiro livro, ou meu primeiro romance. Entreguei a algumas pessoas em cuja independência e bom gosto literário eu confiava (a primeira pessoa que leu foi minha mãe, que não se enquadra em nenhuma dessas características e, portanto, gostou do que escrevi). As críticas que recebi foram duríssimas, e, por isso mesmo, muito bem vindas. Um amigo em especial, me disse, entre outras coisas, que meu livro padecera de esquizofrenia idiomática, que minha personagem principal era insossa, e que ninguém se importaria com ela, que a escolha narrativa, também multivoz, havia sido completamente equivocada, que eu me perdera numa estilização excessiva e numa tremenda autoindulgência e que, enfim, meu livro não tinha vida.
A palavra que mais ficou foi autoindulgência. Só depois de receber as críticas percebi como meu livro era ruim. Logo eu, que me julgo portador de um senso estético até razoável e que tenho cansado de apontar o que gostei e o que não gostei nos mais diversos livros. Às vezes a autoindulgência nos cega mesmo.
Enquanto lia Sal, meu “livro” não me saía da memória. Eu ia lendo e achando o livro ruim, ao mesmo tempo em que notava como havia semelhanças com a minha fracassada empreitada literária.
- Narração multivoz equivocada;
- Personagens sem vida, em especial a personagem principal;
- Excesso de preocupação com o estilo, em detrimento do ritmo da história;
- Prosa pobre – frases previsíveis, como substantivos quase sempre acompanhados por dois adjetivos, ou metáforas e comparações óbvias;
- O grande mistério da história não prende o leitor, ou pior, frustra-o.
Esses defeitos, que tão facilmente aponto em Sal, eu não havia percebido na minha própria narrativa, até que meu amigo Wesley – vamos dar nome aos bois –, os apontou com generosidade e sinceridade.
Da leitura de Sal ficou a repetição de uma triste e valiosa lição que eu pensava já ter aprendido: não escrevo bem.
Isso não significa que eu esteja me comparando com a autora, que eu esteja dizendo que ela escreve tão mal quanto eu.
Sal é um livro ruim, apenas isso, e este é um dado objetivo, considerando tudo que já apontei até agora.
Se você quiser se aventurar, vá em frente, apenas peço que me conte depois o que achou, e se concorda comigo ou não.
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