João 27/05/2020
Literalmente Comer, Rezar e Amar
A jornada de Elizabeth Gilbert pelo mundo para se encontrar já é uma história mundialmente conhecida, em grande parte pela adaptação de Ryan Murphy para o cinema. O que muito gente que não leu o livro não sabe é que não se trata de um romance autobiográfico, mas de um livro de memórias. E esse gênero cai como uma luva na voz de Gilbert.
O pensamento dinâmico somado ao humor e a inteligência única da escritora são o grande trunfo da obra. A maneira com que ela traça os acontecimentos enquanto conta sua busca pelo prazer, pela devoção e pelo equilíbrio entre eles é única.
Em Itália, a primeira parte, Gilbert reserva os primeiros capítulos para contar como ela foi embarcar numa viagem como essa e nos apresenta algumas memórias que ajudam a entender sua personalidade e suas decisões. Quando finalmente embarca para as terras italianas, ela nos presenteia com o melhor terço da obra. Acompanhá-la enquanto aprende italiano e, principalmente, aprende a administrar seu transtorno depressivo num momento totalmente dedicado a fazer o que oferece prazer (não sexual, esse é um acordo que ela faz consigo mesmo antes de começar a jornada) foi a parte mais entusiasmante de todo o livro.
Infelizmente não dá pra dizer o mesmo dos outros terços. Em Índia e Indonésia, Gilbert passa menos tempo falando dela (seja no passado ou no presente) e escreve mais sobre as histórias de pessoas que conheceu nesses lugares ou sobre questões específicas da cultura local. Não que essas temáticas tenham menos importância, mas é como se o livro fosse na contramão do que a autora estava passando.
À medida que as páginas passam, o processo de amadurecimento começa a ser retratado de uma forma mais literal, como se a narradora quisesse nos induzir a entender o que ela estava passando e não necessariamente nos mostrando isso através das memórias. É como se estivesse falando sobre o processo do que narrando o processo em si. Esses pensamentos não roubam a delicadeza da obra, mas nos distanciam um pouco da personagem (no caso a própria autora) e em alguns momentos a torna enfadonha (indo em contrapartida à construção feita na Itália, que foi bem-sucedida em promover empatia e identificação com ela).
Ao retratar essa jornada, Gilbert compartilha conosco sua sabedoria e a sabedoria de grandes personalidades que cruzaram seu caminho. Sua “busca por tudo” convida o leitor à uma busca própria, ainda que seja apenas uma viagem pelo próprio pensamento, pelas memórias e pela imaginação.
Em tradução livre, deixo aqui um trecho muito pessoal e vulnerável de uma dessas reflexões: {[...] eu tenho problemas na imposição de limites com os homens. Ou talvez não seja certo dizer isso. Para haver problemas com limites, deve-se primeiramente tê-los, certo? Eu, porém, desapareço na pessoa que eu amo. [...] Se eu amo você, você pode ter tudo. [...] Eu vou projetar em você todas as qualidades que você nunca nem cultivou em si mesmo. [...] Vou te dar tudo isso e mais, até eu ficar tão exausta e esgotada que a única forma de recuperar minha energia vai ser me apaixonando por outra pessoa.}
Sobre o filme (ou para quem viu o filme e se sentiu satisfeito ao ponto de não se interessar pelo livro), a adaptação dessas memórias em uma narrativa inevitavelmente sacrifica muitas reflexões interessantes e também um pouco da personalidade da Elizabeth Gilbert que é imprimida através do eu narrador. O diálogo supracitado, por exemplo, não ficou fora do filme, mas da forma que foi posto, não é delegado a Elizabeth, mas a uma peça baseada num livro que escreveu. Muitas histórias que ela conta também ficam de fora e até alguns personagens são descartados (enquanto outros ganham adição ficcional). Assim, mesmo conhecendo os fatos, vale a pena ler o que há por trás deles.
Boa leitura!