jota 16/11/2016Templos de consumo...Não é qualquer livro, qualquer história, que a prestigiada BBC adapta, transforma em série para oferecer aos seus seletos espectadores. Então não surpreende que O Paraíso das Damas (Au Bonheur des Dames, 1883) do francês Emile Zola (1840-1902) tenha sido adaptado pela BBC Drama Productions como The Paradise e exibido em duas temporadas (2012-2013), num total de 16 episódios. Como outras que vi (especialmente as de Charles Dickens), são produções esmeradas, que não tratam o telespectador como um mero consumidor de produtos audiovisuais.
Em The Paradise, se o tempo (fins do século XIX) foi mantido, no entanto a ação foi transportada para as terras inglesas, personagens e situações foram eliminados ou modificados, episódios foram esticados ou encurtados etc. Porém, o enredo central de Zola foi mantido: tanto o livro quanto a série contam a história de Denise, uma jovem do interior que vem para a cidade grande, consegue emprego numa loja de departamentos e é envolvida pelo charme do mundo moderno. E por um homem que representa esse mundo nascente como poucos então, Mouret (na série, Moray).
Mas vamos ao livro de fato: esta edição da Estação Liberdade (2008) traz um interessante prefácio com quase 20 páginas, escrito que foi pela historiadora francesa Jeanne Gaillard. Ela é autora de vasta pesquisa sobre a história de Paris e dos movimentos operários e sociais dos século XIX e localiza para os leitores o espaço físico e social em que Zola situou sua trama. Logo de início Gaillard alerta para o fato de que o Paraíso das Damas [o magazine de ficção] "(...) tem muitos traços em comum com a loja de departamentos de la Paix, que existiu de fato em Paris." E outras construções e espaços urbanos no entorno da loja de departamentos também.
Gaillard prossegue e tece interessantes considerações sobre as transformações urbanísticas que Paris sofreu através de Georges-Eugene Haussmann (1809-1891), ou apenas Barão Haussmann, responsável pelo planejamento urbano da capital francesa entre 1853 e 1870, que alargou ruas, criou novas avenidas, bulevares e parques. Ou seja, Haussmann reinventou completamente a cidade; Marshall Berman destaca sua ação modernizadora no imperdível Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar (Companhia das Letras, 2005).
Falando nisso, O Paraíso das Damas surpreende o leitor pela modernidade do que Zola nos conta (não do modo como ele conta; Paraíso tem início, meio e fim, é um romance tradicional). Sempre pensei que a expressão "templos de consumo", aplicada a shopping centers ou grandes supermercados, tivesse sido criada por algum sociólogo (americano, de preferência) na segunda metade do século XX, quando esses enormes magazines invadiram praticamente todo o mundo. Que nada! Os grandes magazines e a expressão existiam desde bem antes. Eis o que Zola escreveu (página 282) nos anos 1880: "[O magazine] era a catedral do comércio moderno, sólida e leve, feita para uma romaria de clientes. (...) A grande paixão de Mouret [o proprietário] era triunfar sobre a mulher. Ele a desejava rainha em sua casa e erguera esse templo para tê-la à sua mercê." Curioso, não?
Assim, apesar de o romance entre Denise e Mouret tomar muitas páginas da obra, grande parte dela é dedicada mesmo às transformações por que passava a Paris de então, inclusive seu comércio, que vê as pequenas lojas de bairro sucumbirem frente aos poderosos magazines que vão surgindo não apenas na capital francesa, mas em toda Europa, como a conhecida Harrods londrina, que evoluiu a partir de um pequeno estabelecimento fundado em 1824.
Da mesma forma, o Paraíso das Damas, foi iniciado com uma pequena loja no centro de Paris mas no final cresceu tanto que tomava todo um quarteirão, com ambientes requintados e mercadorias variadas, para a delícia de suas frequentadoras. E Zola não é muito complacente com as consumidoras: quase todas são retratadas pelo olhar negativo do autor. São mulheres frívolas, consumistas, invejosas, fofoqueiras, interesseiras e até mesmo algumas ladras. Não apenas elas, que são ricas: as vendedoras também não escapam da pluma que Zola empunha como uma espada para descrevê-las.
De volta à contemporaneidade de O Paraíso das Damas: Mouret promove em sua grande loja de fins do século XIX transformações que somente chegaram a alguns estabelecimentos comerciais muitas décadas depois, conforme destaca a editora brasileira: "(...) numa época em que a grande distribuição só começava, os princípios de marketing e publicidade utilizados pelo protagonista se assemelham bastante às técnicas de que se servem hoje supermercados e shopping centers: vitrines vistosas, mudanças periódicas da disposição de produtos, organização espacial labiríntica para que as clientes se "percam", remarcação de preços e promoções, publicidade em mídias diversas." Por mais talentoso e criativo que fosse, teria o autor do magnífico Germinal (1885) tirado tudo isso de sua cachola?
Claro que não: ele observava a realidade que o cercava, a Paris em mudança, o mundo novo que surgia antes que o século XX tivesse começado de fato. Coisa que a historiadora Jeanne Gaillard destaca no prefácio desta obra, que pode ser lida como um romance e ao mesmo tempo como um livro de história. Peter Gay em Represálias Selvagens - onde, através de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann e outros autores, estuda a relação entre literatura e história -, nos lembra que "(...) nas mãos de um romancista de primeira categoria, uma ficção pode fazer história, nos dois significados dessa expressão." É o caso de Emile Zola e este extenso e brilhante O Paraíso das Damas.
Lido entre 08 e 16/11/2016.