Tauana Mariana 04/06/2014
Excelente
Sinapse:
Como imaginar que o sári vestido pelas indianas tem mil e uma utilidades na vida dessas mulheres? Por que nativos de Trinidad e Tobago atribuem tanta importâncias às suas roupas a ponto de ter dezenas de sapatos? Por que os moradores de conjuntos habitacionais, em Londres, reformam suas casas embora não sejam seus proprietários? O que explica a exuberância da capotaria dos carros na Jamaica? Como os jamaicanos estabelecem sua relações de aliança por meio de telefones celulares? São perguntas como estas que o antropólogo inglês Daniel Miller responde. Ele afirma que nossos trecos, troços e coisas nos fazem na mesma medida em que são feitos por nós. Baseado em mais de trinta anos de pesquisas, este livro é um manifesto em prol do estudo da cultura material e da adoção de um novo método para interpretar os objetos que nos cercam como formadores de nossa vida psíquica e social.
Sobre o livro:
"A premissa deste livro foi a observação de que as coisas fazem as pessoas tanto quanto as pessoas fazem as coisas".
É isso mesmo. As coisas nos fazem também, aquilo que somos também é o resultado dos objetos que nos cercam. Miller contextualiza e explica tal premissa brilhantemente e de uma forma muito prazerosa de ler (além de ser espirituoso).
O livro em questão é uma união de artigos e pesquisas desenvolvidos pelo autor e organizados (e atualizados) de forma que nos passasse sobre o que se trata a "cultura material".
O autor mostra-nos que não há meio de separar a sociedade de seus objetos. Não há como negá-los. Também explica-nos que acusações como "Nossa! como você é materialista e não liga para as pessoas" não faz sentido. Primeiro: ninguém vive sem o material; segundo, saber relacionar-se com os objetos também aprimora a socialização. Desta forma, "a ideia de que os trecos de algum modo drenam a nossa humanidade, enquanto nos dissolvemos em uma mistura pegajosa de plástico e outras mercadorias, corresponde à tentativa de preservar uma visão simplista e falsa de uma humanidade pura e previamente imaculada" (p. 11). Além do mais, "não ter coisas não significa que você não as queira".
Para exemplificar que os trecos nos criam (e cabe ressaltar que treco não tem definição, nem precisa ser algo tangível), Miller conta-nos sobre a relação entre as indianas e seus saris, entre os trinitários e as cerâmicas, sobre como as roupas podem contar a história de um lugar (e até mesmo de uma pessoa), as casas e seus donos (e seus fantasmas), a relação dos jamaicanos com os celulares e os carros e fala até mesmo da Barbie.
Sobre nossa relação com a casa, o autor declara: "Mudar-se permite uma espécie de realinhamento crítico das pessoas em relação às suas posses. Ao se mudar, elas se desfazem de alguns de seus trecos, mas, em contraste com a casa, muitas outras posses se mudam com elas. Como tal, mudar de casa permite às pessoas reconstruir sua biografia pessoal tal como representada em memórias de objetos associados, e, por meio disso, a percepção que a família tem de si mesma. [...] mudar de casa é uma forma de reescrever a própria biografia inscrita em coisas" ( p. 145).
Bourdieu, Lévi-Strauss, Marx, Hegel e Simmel são amplamente citados durante a obra, mostrando o lugar de fala do autor, que destaca: seu viés de pesquisa é hegeliano. A partir dos conceitos de tais autores, Miller discorre sobre a cultura material, materialidade-imaterialidade, a humanidade das coisas, autoalienação e objetificação. Em suma, acredita que "os objetos nos fazem como parte do processo pelo qual os fazemos. [...] em última análise, não há separação entre sujeitos e objetos" (p. 92).
A espirituosidade do autor:
[...] eu seria o primeiro a admitir que o termo autoalienação soa mais como o dia seguinte de uma terrível noite de sábado na balada. Na verdade, porém, para Hegel, tratava-se de um processo quase inteiramente positivo e decerto necessário para o nosso desenvolvimento (p. 91).
Ninguém o impele mais longe que a ambição teórica de Hegel. Nele você encontrará ideias sobre a Razão Absoluta que podem explicar muito mais coisas que O guia do mochileiro das galáxias sobre a vida, o Universo e o que mais houver (p. 119).
Você precisa ter mais amigos no Facebook que seus colegas. Também deve ter uma foto agarrada à bolsa, o rímel escorrendo, dormindo no corredor do albergue de estudantes, já que estava bêbada demais para chegar ao quarto. De outro modo, você simplesmente nunca frequentou a universidade. Assim, logo deixamos de pensar em tecnologias de comunicação apenas como coisas, ou capacidades, e começamos a vê-las como análogas à arte da sedução: modos de nos fazer parecer atraentes para a pessoa com quem nos comunicamos (p. 170).
Se há um objeto que indica de forma abrangente a derrota materna, este é a boneca Barbie. [...] Ela não só representa a imagem pré-feminista da mulher tola, sexualizada e viciada em moda como nem sequer consegue ficar de pé (p. 210).
Enfim, livro excelente.
site: http://tauanaecoisasafins.blogspot.com.br/2014/06/trecos-trocos-e-coisas.html