spoiler visualizarKein 07/04/2014
Em O Lobo do Mar, Jack London não demora em colocar o leitor a par do que será dali para frente a vida de Humphrey van Weyden, intelectual americano que vive das conquistas de seus antepassados e que nunca enfrentou verdadeiros problemas, seja financeiro, saúde, alimentação, etc… um homem sensível, tanto físico quanto mentalmente, que cresceu de forma absolutamente civilizada aos olhos daquela sociedade dominante. Humphrey acaba perdido em alto-mar após um acidente marítimo e é neste momento que cruza seu caminho o barco Ghost que o salva e que caminha para o Mar de Bering para temporada de caçada de focas, capitaneado por Wolf Larsen, homem que deste ponto em diante será o fruto ao mesmo tempo de seu mais alto repúdio e admiração.
Ghost é o reino de Larsen, homem que depende de sua força e sua brutalidade para comandar de forma rígida e desumana, algo que aos olhos de Hump — apelido que Humphrey “carinhosamente” recebe do capitão — traz um choque de realidade muito forte, levando-o à diversos questionamentos filosóficos.
Para demonstrar logo o poder da hierarquia dentro do barco, Wolf Larsen, coloca Hump na posição de camaroteiro, vaga por conta da morte do anterior que morre assim que o protagonista chega, posição mais baixa naquele ambiente, onde acaba subjugado até mesmo pelo cozinheiro. Mas apesar dessa posição desfavorável, Hump tem grande valor na visão do capitão que possui grande interesse em questões relacionados a vida e de como devemos levar nossa existência, desse modo começa o que há de mais interessante no livro, o embate entre duas visões completamente diferentes do mundo.
Ao meu ver, a principal discussão que o livro traz é a existência ou não da imortalidade da alma, é deste que os demais pontos são desenvolvidos. Wolf Larsen não acredita na imortalidade da alma, para ele estamos condenados à finitude, o que justifica suas atitudes que caminha pelo niilismo e algumas vezes pisa no sadismo, afinal, qual o motivo de ser uma boa pessoa para os demais se temos uma vida curta? O melhor a se fazer é buscar uma satisfação à curto prazo. Wolf vê a vida numa simplicidade tão pura de argumentos e de desdém a vida alheia que traz um verdadeiro conflito não só para Hump, como também para o leitor. Valorizamos demais nossas vidas que as colocamos em pedestais, mas a verdade é que esse valor só é verdadeiro para nós mesmos:
“— (…) Há vida de sobra querendo nascer. Se ele tivesse despencado e espalhado os miolos pelo convés como mel escorrendo do favo, o mundo não teria perdido nada. Ele não valia nada para o mundo. A oferta é grande demais. Ele tinha valor somente para si mesmo e, para demonstrar que mesmo este valor é fictício, ao morrer ele não terá consciência de que perdeu a si próprio.”
Wolf Larsen é um homem que mantém o seu poder perante os demais através da brutalidade, um homem, que apesar de até ser bastante desenvolvido intelectualmente, sabe que o seu maior poder está em seus músculos, enquanto Hump se faz forte por seus argumentos intelectuais. Neste pequeno reinado, mostrando um pouco de seu lado sádico, Larsen busca demonstrar que o verdadeiro domínio está na força física e não na intelectual, e para isso ataca seus tripulantes, chegando até mesmo ao ponto de deixá-los morrer, apresentando para Hump que a disputa no mundo é resolvida quando o forte domina o fraco, nada mais que isso, em suas palavras “é agradável ser forte, por causa das recompensas, e é desagradável ser fraco, por causa das desvantagens”, bem ao estilo do capitão, simples e direto ao ponto. Isso traz também o conceito de hierarquia, o tempo todo claro na estrutura do navio e nas relações entre as diferentes “castas”.
O livro tem em si uma divisão clara, a primeira parte que demonstra as provações de Hump de camaroteiro descascando batatas até a posição de imediato do capitão onde possuí um grande poder, e a segunda parte onde o Ghost encontra uma pequena embarcação perdida onde está Maud Brewster, uma rica e famosa escritora que partilha muito da visão de Sr. Van Weyden — é assim que Humphrey passa a ser chamado pelo capitão quando alcança a posição de imediato.
Na citada segunda parte, Van Weyden, que passou a admirar cada vez mais a nova tripulante, resolve fugir junto com Maud, enquanto todos dormem, em um dos botes de caça. Leva consigo suprimentos para enfrentar o frio e os longos dias de mar. Porém se perdem e acabam em uma ilha onde só encontram focas, e nela ficam por um tempo sobrevivendo como podem. Neste momento fica clara a utilização por Weyden de todos os seus conhecimentos e força recebidos na embarcação de Larsen. Então quando o casal já acreditava ter se livrado de seus pesadelos no Ghost, em uma manhã ao sair de sua barraca arranjada, Weyden se depara com a assustadora embarcação ancorada próximo ao seu acampamento à beira-mar. Porém quando sobe no barco, tudo que encontra é Wolf Larsen sozinho e debilitado, e cada vez mais perdendo suas forças. Esta segunda parte é um claro afrontamento das consequências dos modos de vida levados tanto por Humphrey quanto por Larsen. Humphrey, que sempre adotou para si atitudes altruístas e de respeito aos demais, acaba com Maud ao seu lado, ambos estão sempre dando força um ao outro, apesar de nunca ter sido tão forte quanto o capitão, ele foi capaz de se somar aos demais e crescer com isto. Já Wolf Larsen sempre se garantiu através de sua força física e seu poder sobre os demais, agora se via um rei sem ter quem reinar, nunca criou relações afetivas, apenas relações de poder opressivo, então é chegado o momento em que ele se vê traído por seu próprio corpo, aquele que ele sempre confiou, a sua principal ferramenta que ficou para trás, e ele se vê solitário, acompanhado apenas por seus pensamentos.
Apesar de parecer que Van Weyden “ganhou”, fica claro que Jack London quase alcança um meio-termo , já que ele jamais teria conseguido sobreviver na ilha se não fosse toda a provação que o capitão Larsen lhe impôs, tornando-o um homem mais forte, capaz de caminhar com suas próprias pernas. É quase como o caminho do meio budista, onde o choque dos dois criou um ser que evoluiu tanto a mente quanto o corpo, criando um equilíbrio.
O livro é muito bem escrito, as brutalidades do capitão são muito bem descritas, suas características muito bem definidas e rapidamente fiquei como Weyden, em um misto de admiração e repulsa. Quando se propõe a filosofar, Jack London não complica nada, bota de forma direta as disparidades. A única coisa que complica aleitura são os termos náuticos, já que não possuo esse conhecimento. A edição da Zahar que comprei possuí um glossário para estes termos, não sei se as demais também têm, mas mesmo assim é difícil a visualização, por conta disso apelei para o Google Images para entender melhor. Apesar de me incomodar um pouco a segunda parte onde Jack London se perde no exagero romântico entre Maud e Weyden, repetindo demais a admiração que ela trazia ao protagonista, acredito que seja algo que tenha acontecido pelo fato de o autor ter se apaixonado quando escrevia a segunda parte, O Lobo do mar é um ótimo livro, me trouxe um personagem que questionou minhas próprias verdades, isso misturado à uma boa trama, mesclando bem ação e seu existencialismo