Gustavo.Romero 19/04/2018
Inusitado
O livro sem dúvida provoca estranheza; afinal, tudo indica que se trata de um relato de "peraltices" infantis narradas por um menino irlandês, e não de uma narrativa propriamente dita (a orelha do livro não ajuda muito, destacando os elementos "cômicos" do livro). Pois então, aos poucos, a partir da própria narrativa, a partir de pequenas fissuras semióticas, gradativamente vão se abrindo perspectivas sobre o fim da infância sob o ponto de vista da própria experiência infantil, opção complicada em se tratando de um livro escrito por um adulto - todos temos dificuldade em reconstruir a infância sem projetar sobre ela nossos preconceitos adquiridos na fase adulta. É por isso que o recurso de Roddy Doyle é bastante ousado, pois todos os elementos voltados à minuciosa descrição do sadismo infantil são, contraditoriamente, "expurgos" fundamentais à progressão do livro, e não apenas figuras das assombrosas (e cômicas) ações depreciativas adotadas pelas crianças; isso porque a narrativa, em primeira pessoa, compõe-se na forma de círculos concêntricos: todos esses expurgos estão lá para serem retirados, aos poucos, e com isso destacar as inúmeras camadas da vivência cotidiana que se sobrepõem à essência, aos sentimentos mais profundos, ao 'subsolo'. Cada retirada dessas camadas representa para o narrador, Paddy Clarke, a expansão do mundo exterior em oposição a e imposição sobre seu mundo interior, coincidindo com o processo de tomada de consciência do sombrio caráter humano, da própria insignificância e impotência que coincidem com o fim da infância. Doyle registra esse processo metafórica e magnificamente por meio da progressiva urbanização do bairro onde vive Paddy Clarke, quando terrenos baldios são ocupados e novas casas construídas (uma "violação" da infância), novos vizinhos surgem e mais agressivos do que a "gangue" de Paddy (a consciência da impotência), as brigas entre os garotos, que perdem aquela aura "ingênua" romântica e dão lugar à agressão e violência de fato (a face humana obscura, que depende mas quer rejeitar o "outro") e com uma mudança significativa na percepção de Paddy com relação ao seu irmão mais novo e com relação aos pais (o núcleo familiar, a propósito, é o centro nervoso de toda a narrativa, espaço por excelência na consciência de si a partir do "outro", cujo desencantamento conflui para o desfecho do livro). Por tudo isso, não é mero acaso que o livro não contenha capítulos: trata-se de um único fôlego semântico, e deve ser lido como uma peça única, dura, confusa, experimental e, portanto, verdadeira, assim como é nossa infância.