NARA DIAS 23/01/2017AvóDezanoveA PraiaDoBispo é um bairro tranquilo de Luanda, onde o VelhoPescador cuida de sua rede, o VendedorDeGasolina espera um cliente que nunca chega, AvóAgnette e AvóCatarina conversam com a vizinha e ralham com os miúdos (crianças pequenas). As obras de um mausoléu, porém, transformam e ameaçam o cotidiano: soldados soviéticos comandam a construção e o projeto ameaça desalojar os moradores.
AvóDezanove e o segredo do soviético foi publicado pela Editora Seguinte, selo da Companhia das Letras. A história acontece em uma praia de Luanda e é contada através dos olhos curiosos de um sensível garoto cheio de imaginação. Apesar disso, fica evidente o conflito vivido pelos moradores locais, com as incertezas sentidas com o andamento da construção do mausoléu e a possível implosão das casas ao redor.
O texto mostra a simplicidade da vizinhança, o cotidiano das crianças, suas brincadeiras e os costumes locais. No decorrer da leitura aparecem no texto palavras tipicamente africanas e para isso existe um glossário no fim do livro que nos ajuda a compreender o significado de cada uma delas, no entanto, em alguns momentos nem é necessário à consulta, pois o significado da palavra já fica claro devido ao contexto no qual está inserida. Mesmo assim, preferiria que cada palavra tivesse seu significado no rodapé, o que teria sido bem mais prático.
A capa é fantástica, pois mostra os principais elementos que envolvem a narrativa. A construção do Mausoléu para abrigar os restos mortais do primeiro presidente de Angola, Agostinho Neto; a foice e o martelo, símbolos do comunismo; o pé com quatro dedos, responsável por deixar a avó Nheté com dezenove dedos; estrelas que representam as dinamites dos soviéticos. Adorei a diagramação do papel, deixa a publicação com a qualidade que gosto de manusear.
“- Agora não vais ser a minha mãezinha.- Como assim?- Amanhã vai ser a minha dezanovinha, mãe. Só vais ter dezanove dedos.”
Ao começar este livro, eu demorei em mergulhar na história. Foi minha primeira leitura africana e o português angolano foi inicialmente bastante esquisito de entender, mas um esquisito bom, eu adoro ler gêneros diferentes ao que estou acostumada. Além disso, os nomes são escritos grudados, em algumas partes não existe o uso de vírgulas, em outras não é utilizada a letra inicial maiúscula. Fiquei sem fôlego ao ler a seguinte parte:
“Chuva assim de começar de repente sem dar tempo de dizermos que estava ainda só a pingar com cheiro bonito de tirar a poeira das folhas e incomodar os morcegos (…)”
Apesar desse leve desconforto inicial, me senti atraída pela narrativa e curiosa para descobrir qual era o segredo do soviético, o oficial Bilhardov ou camarada Botardov.
“Existem coisas que você tem que fazer, os outros nunca vão compreender. Isso acontece. São segredos que só o seu coração pode entender.”
*Citação que aparece no livro escrita em espanhol
Alguns momentos me fizeram refletir sobre a simplicidade dessas pessoas, que vivem tranquilas na região praiana.
“Desataram as duas a rir numa alegria assim que eu fiquei espantado…”
“- Ainda de luto, dona Catarina? – perguntava a vizinha DonaLibânia.- Enquanto a guerra durar no nosso país, comadre, todos os mortos são meus filhos.”
Depois de terminar o livro, alguns pontos precisavam ser pesquisados, para que eu entendesse melhor a obra, porque apesar de ser fictícia, contêm diversos componentes reais:
– Presidente António Agostinho Neto: lutou pela independência de Angola, governando o país a partir de 1975, após emancipação de Portugal. Figura pública extremamente importante para o continente africano por seus ideais, morreu em 10 de setembro de 1979.
– Presença dos soviéticos em Angola: estiveram realmente lá, assim como a presença de outros países como Cuba, África do Sul e EUA. Após a independência de Angola, três grupos guerrilheiros combatem entre si na tentativa de tomar o poder e essa briga se estende com pequenos intervalos até 2002.
– Mausoléu: realmente existe na Praia do Bispo. Após a interrupção da obra que iniciou em 1981, em 2005 foi retomada e finalmente inaugurada em 17 de setembro de 2012, data escolhida em homenagem ao nascimento do falecido presidente. A torre tem 120 metros de altura e conta com área de jardins e lazer.
Em 2010, a obra AvóDezanove e o segredo do soviético foi premiada na categoria juvenil com o Prêmio Jabuti de Literatura e na categoria em Língua Portuguesa com o Prêmio FNLIJ. Além de finalista nos prêmios São Paulo de Literatura e Portugal Telecom. Ondjaki publicou 24 livros desde 2000.
A seguinte frase, que o personagem EspumaDoMar menciona no livro, define meu sentimento pela obra de Ondjaki:
“(…) as palavras têm encanto de magia e forças do invisível (…).”
Enfim, como escrito na página da editora: “É um romance que ultrapassa o horizonte histórico e biográfico para resultar num relato ficcional amparado na poesia da imaginação, no humor inocente da infância e na linguagem que combina o sabor da oralidade do português angolano ao talento narrativo de um jovem escritor africano”.
site:
http://www.viagensdepapel.com/2015/11/19/resenha-avodezanove-e-o-segredo-do-sovietico-de-ondjaki/