CooltureNews 26/08/2013
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No ano de 1818 foi publicado um dos romances que certamente foi um dos pilares para toda a ficção de terror que temos hoje. A inglesa Mary Shelley começou a escrevê-lo quando tinha 19 anos e logo Frankenstein tornou-se uma daquelas estórias conhecidas mundialmente. O embate entre criador e criatura é tão conhecido que, acho, nem preciso fazer um resumo do romance de Shelley, mas aproveito para apontar que, ao contrário do que muita gente acredita, o nome Frankenstein se refere ao criador e não a criatura.
De acordo com a história da literatura, Mary Shelley teve a ideia do romance devido a uma sadia competição entre amigos; cada um contaria uma estória e eles decidiriam o vencedor. Os amigos em questão eram Lorde Byron, poeta famosíssimo do romantismo inglês, seu amigo e médico John Polidori e o esposo de Mary Shelley, Percy Bysshe Shelley. A história de Mary Shelley não foi contada na competição, mas a escritora não desistiu e foi aumentando a mesma, até tornar-se o romance que temos hoje.
Particularmente, quando li o Frankenstein de Shelley há alguns anos, achei-o muito bom como literatura, mas bem fraco em termos de terror. Claro, a época da escritora foi outra e fazer comparações com a ficção de terror mais recente seria no mínimo idiota. O ponto forte do romance de Shelley é o dilema moral de alguém que sabe que fez algo ruim, mas não consegue imaginar como consertar a situação sem fazer algo pior. Mas por que diabos eu estou gastando tanto texto e não começo logo a falar deste A caderneta de Victor Frankenstein? Por dois motivos: Você leitor precisava ter uma noção mínima da obra e da criação da obra de Shelley e eu preciso confessar que, quando vi o nome do livro de Peter Ackroyd, criei um imenso preconceito, imaginando que seria uma cópia bem ordinária e sem mérito algum.
Bem, eu estava imensamente engando e isso é ótimo. O senhor Ackroyd nos entrega em A caderneta de Victor Frankenstein nada menos que um livro excepcional! Uma rápida busca pelo nome do autor na internet revela que ele é biógrafo, escritor e crítico literário, com um profundo interesse na história e cultura da cidade de Londres. Isso explica o gigantesco esmero na descrição de bairros e lugares de Londres, bem como um genuíno respeito para com a obra de onde se baseia.
Em A caderneta acompanhamos, em linhas gerais, a mesma história do romance de Shelley, contada pelas palavras do próprio Victor Frankenstein. Apesar de ser um livro lançado há pouco tempo (em 2008 lá fora e em 2013 pela Editora Record), Peter Ackroyd utiliza uma linguagem requintada, bem próxima da de Mary Shelley, com toda a riqueza de expressões locais da época, criando uma ambientação gótica adequada e bastante verossímil. Como já dito, as descrições são um ponto importante, notadamente as da populosa e perigosa Londres em contraste com paisagens rústicas e belamente melancólicas de outros locais da Europa, em especial a Suíça, local de origem do personagem Victor Frankenstein. Peter Ackroyd escreve com um delicado equilíbrio entre passagens descritivas e outras com o predomínio de diálogos, impedindo que a leitura se torne maçante. Além disso, cada uma das personagens são muito bem aproveitadas, com seu devido tempo de exposição no livro.
Peter Ackroyd é um senhor de grande bravura literária, pois escreve guiando-se por duas decisões importantíssimas. A primeira é a de nos fazer acompanhar, com a riqueza de detalhes que somente toda a calma do mundo permite, o percurso da personagem de Victor Frankenstein. Sua infância na bela Suíça está lá, sua adolescência, quando decide dedicar-se aos estudos a respeito da criação da vida é totalmente esmiuçada e é desta forma que a personagem adentra a universidade. Outra sábia e corajosa decisão foi a de misturar a ficção com a história literária: Ao adentrar na universidade, Victor Frankenstein conhece seu melhor amigo, um jovem de nome Percy Bysshe Shelley... Sim, o futuro esposo de ninguém mais, ninguém menos, que a própria Mary Shelley! Mais adiante Lorde Byron adentra à narrativa e, claro, o episódio da competição de estórias também comparece. E vamos mudar de assunto pois eu já falei demais aqui...
Peter Ackroyd é consciente com o material que tem em mãos. Diferente de Mary Shelley, o autor investe bastante em criar passagens ricas em suspense e até mesmo terror. Neste quesito, a criatura rouba a cena. Seu drama interno, espelhado pelo drama do próprio Victor Frankenstein, continua com a mesma importância da do original, mas a sua descrição é mais acentuada, sua aparência é mais repulsiva e inspira maior piedade, piedade essa que é renegada pela criatura de desejos conflitantes e lançada contra seu criador.
Se eu tivesse que apontar um ponto negativo, seria em alguns momentos em que o aspecto de misturar ficção e realidade acaba se tornando mais importante que o embate entre criador e criatura. Com isso, algumas coisas acabam acontecendo rápido demais. Mas trata-se de um problema mínimo, que não atrapalha em nada o livro e que, literalmente, acaba desviando nossa atenção para um final surpreendente.
A Caderneta de Victor Frankenstein pode ser resumido em uma palavra: tributo. O livro é uma sincera e gostosa homenagem ao romance de Shelley, dizendo mais em cima daquilo que já foi dito, sem tentar rivalizar ou ir contra a sua fonte. Ao longo de suas trezentas e poucas páginas, Peter Ackroyd recria o mesmo clima sombrio e dramático que tanto caracteriza o romance de Shelley, sem se esquivar da missão de recontar uma história já conhecida como se fosse nova. Uma missão cumprida com competência, muito mérito e que não decepciona quem já conhece a obra original.