@fabio_entre.livros 17/03/2019
Filosofia e Sarcasmo
Antologia composta por onze textos, o volume “Contos”, lançado em 2002 como parte integrante da Coleção Obras-Primas, da editora Nova Cultural, reúne os trabalhos mais notáveis de Voltaire na ficção. O autor, um dos mais célebres pensadores do Iluminismo, destila nesses textos sua postura filosófica através de um humor que varia entre o sutil e o cáustico. Apesar do título, “Contos” também inclui trabalhos que, por serem mais extensos, podem ser classificados como novelas – a exemplo de “Zadig”, “Cândido”, “O Ingênuo” e “O Homem dos Quarenta Escudos”.
O livro começa com “Zadig ou O destino: História oriental”; parecendo ter saído das páginas de “As mil e uma noites”, essa história é dividida em 21 capítulos que discorrem sobre o jovem Zadig, conhecido na Babilônia por sua sensatez e sabedoria aguçadas. Entretanto, é essa mesma sabedoria que faz com que Zadig esteja constantemente em desgraça, perseguido por um destino fatídico. Através das desventuras tragicômicas de Zadig, Voltaire expõe o conflito entre ser feliz ou ser sábio e do que é necessário abrir mão para alcançar uma ou outra coisa.
Em “O mundo como está: Visão de Babuc escrita por ele mesmo” um anjo visita um homem de nome Babuc, a quem comunica a indignação dos espíritos celestes pela conduta dos habitantes da cidade de Persépolis; cabe a Babuc ir até lá a fim de fazer um relatório que decidirá se a cidade será ou não destruída. Tal tarefa não será simples, pois o personagem oscila frequentemente de perspectiva, conforme presencia a mesquinhez e a generosidade naquele lugar. A questão aqui é que o julgamento superficial não pode abarcar todos os aspectos de uma situação: não existe o totalmente branco ou preto; o que há são gradações de cinza.
“Memnon ou A sabedoria humana” apresenta um personagem que planeja obter sabedoria e felicidade com a maior facilidade, enumerando medidas que, em teoria, funcionam perfeitamente; porém, iludido por sua própria boa-fé, Memnon cai em desgraça física e moral, necessitando de intervenção divina para compreender seu fracasso filosófico.
“Micrômegas: História filosófica” é uma engenhosa mistura de ficção científica com sátira à maneira de Jonathan Swift: dois gigantes filósofos do espaço (um deles, o personagem-título, habitante de uma estrela e o outro, do planeta Saturno) viajam pela Via Láctea até chegar à Terra, que encontram habitada por “átomos” (os seres humanos). Daí discorre um divertido diálogo entre os terráqueos e os extraterrestres, sobre questões científicas e metafísicas. Por sua vez, “História das viagens de Scarmentado: Escrita por ele mesmo” é uma crítica sarcástica aos dogmas e hábitos religiosos bárbaros presenciados por um narrador em 1ª pessoa nas viagens que realiza através da Europa, Ásia e África.
“Cândido ou O otimismo”, obra mais conhecida do autor, dispensa apresentações. Aqui Voltaire exprime-se no auge do vigor narrativo e da ironia ao narrar as aventuras quixotescas do jovem Cândido, sempre metido em apuros, tentando conciliar a condição humana com a filosofia otimista de seu mestre Pangloss. Já em “História de um brâmane”, o autor deixa de lado o humor e retoma o questionamento de “Zadig” ao narrar, no conto mais curto do livro, a inquietação de um brâmane que não é feliz porque filosofa demais.
“O branco e o preto” narra a história de um jovem apaixonado disposto a empreender uma viagem cheia de perigos a fim de reencontrar-se com sua amada, princesa de uma região longínqua. Para auxiliá-lo, ele conta com os conselhos sempre opostos de seus dois criados: Topázio e Ébano, os quais são alegorias do bem e do mal decorrentes de nossas decisões e ações . “Jeannot e Colin” é outro conto que reflete questões morais ao tratar da vida de dois amigos de infância separados pela mudança de status social de um deles, que se torna fútil e estúpido, enquanto o outro permanece leal e diligente.
Nos dois últimos textos do livro, Voltaire alia a observação ferina com uma crítica explícita à Igreja, ridicularizando a corrupção, concupiscência e mesquinhez dos membros do clero. “O Ingênuo: História real, tirada dos manuscritos do padre Quesnel” começa narrando o choque cultural decorrente da chegada de um hurão ao litoral francês. Desde as dificuldades dos religiosos em catequizar o “selvagem” nos dogmas do catolicismo até o desdobramento melodramático que a história toma, chegando a um clímax trágico, o clero sempre exerce um papel desmoralizante sobre o protagonista. “O Homem dos Quarenta Escudos”, enfim, reflete a exploração abusiva dos socialmente desfavorecidos pela Igreja e pelo Estado.
Depois deste textão, só resta concluir: este livro é uma preciosidade que merece ser apreciada, mesmo por quem não gosta particularmente de filosofia; a língua de Voltaire devia estar até hoje conservada em formol para a posteridade.