Marc 04/10/2013
Mais do Mesmo
Não queria ser o único a destoar da série de elogios ao livro. Na verdade, para ser franco, quando comprei o livro já estava com uma enorme inclinação ao elogio. Antes mesmo de ler, porque Fun Home havia sido uma grata surpresa. Mas bastaram umas oito páginas para mudar radicalmente de opinião. O livro é ruim, muito ruim. Nem mesmo a enorme capacidade de desenhar e combinar a voz em off com os diálogos foi capaz de impedir essa minha impressão. Sei que provavelmente serei um dos poucos a falar mal, até agora não li sequer uma resenha em sites especializados que criticasse o livro, mas não vou mentir em relação ao que pensei só para receber uns comentários positivos...
O primeiro ponto que chama a atenção é que o talento de Alison Bechdel, comprovado em Fun Home, não soube evoluir. Ela quis fazer o mesmo livro, mas agora com a mãe. É irritante ver como as mesmas questões aparecem novamente. E para piorar, o fundo psicológico que não consegue convencer ninguém, que não funciona com a mesma maestria da opção do livro anterior. Usar James Joyce e Marcel Proust foi realmente algo de importante não apenas para o livro em si, mas para o horizonte das HQs. Recorrer a Winnicott, ao contrário, me parece um caminho fácil, uma tentativa de reproduzir o sucesso espetacular do álbum anterior. Não é dando mais do mesmo aos leitores que a autora vai avançar...
E fico imaginando o dilema, o real e mais importante, que a autora não aborda em sua metalinguagem: como conseguir a mesma repercussão agora? Um trabalho premiado, elogiado por leitores e por críticos, uma mostra evidente de que os quadrinhos podem ser adultos no sentido mais abrangente do termo; enfim, como conseguir continuar nesse caminho? E a autora decidiu que era fazendo exatamente a mesma coisa, que os leitores iriam adorar e a crítica iria perceber a sutileza com que passa da literatura aos quadrinhos e vice-versa. Mas não é assim, infelizmente. O dilema de ser rotulada como escritora de um sucesso só fez com que entrasse pela via já pavimentada e segura de Fun Home novamente. Alison Bechdel se diminui na tentativa de não ser menor que ela própria. Uma pena. Comete o erro de tentar agradar o público e esse é o pior erro de um artista, ou de qualquer um que submeta seu trabalho à apreciação geral. Todas as vezes que pensamos: “será que isso vai agradar meu público” e retrocedemos para ir em outra direção, é um pouquinho do artista que morre.
Depois de aceita essa dura verdade, talvez o álbum agrade mesmo aos leitores que esperavam uma nova versão de Fun Home. Tudo está ali: a revisão da infância, a censura aos silêncios dos pais, o choramingo com a falta de amor que (ela supõe) apenas seus pais não tiveram por ela, enquanto todo o restante da humanidade se amava e sorria feliz. Mas Fun Home mostrava, e agora acredito que à revelia da autora, um lado inevitavelmente benévolo da relação com seu pai. Ela ia descobrindo que apesar da falta de amor, seu pai não era um mau sujeito, apenas não sabia lidar com crianças. Porque a partir da faculdade, quando já poderiam conversar de igual para igual, começou até a admirar sua vasta cultura. Era a narrativa de uma série de descobertas do mundo e de si mesma, a procura pelo seu território. E nesse sentido dou razão à autora, porque era preciso, para ser uma artista, rever sua infância e adolescência para conhecer sua voz.
Esse, no entanto, é um trabalho de uma pessoa que já sabe de tudo isso, que já chegou à maturidade. Sua voz está estabelecida, seu mundo criado. Mas então porque ela insiste em não sair do consultório?
E lembro da crítica que vários autores já fizeram à dependência que a psicanálise cria nos pacientes. Em determinado momento, depois que consegue estabelecer uma verdade sobre o passado e sobre si, o paciente não consegue mais sair disso. Esse tema passa a se repetir e repetir, e o paciente remete todas as coisas de sua vida a infância. Vira um circuito retroalimentado. Tudo que lhe acontece precisa ser dito e pensado no consultório para ganhar sentido. É como se a psicanálise esvaziasse a capacidade de gerar significado de seus pacientes e implantasse uma estrutura, uma cadeia, que obriga todos os acontecimentos a percorrer os mesmos caminhos e chegar, inevitavelmente, ao mesmo lugar.
Se alguém duvida dessa dependência, basta prestar atenção às cenas de análise no livro. Retrata a si mesma sempre insegura, curvada, deitada e com expressão de dúvida, enquanto a analista aparece firme, como um apoio. Isso não é por acaso. É exatamente assim que as coisas acontecem. E a maneira como as analistas vão induzindo as descobertas de Alison é a maior prova de seu domínio absoluto.
Também acho bastante vulgar a necessidade de afirmar a homossexualidade de seu pai. E o desprezo por sua mulher, condescendente, no entanto, com seus relacionamentos com homens desprezíveis. E acho vulgar, olhando Fun Home à luz desse livro atual, porque se essa era sua realidade, se foi trabalhada com anos e anos de análise, de que vale retomar esse tema? Me parece que apenas pelo prazer de cutucar uma ferida que já cicatrizou, ou pelo menos deveria estar cicatrizada. Apesar disso, Fun Home consegue ser benevolente, porque narra a descoberta de que o pai não é a figura tão vazia que sua infância fazia supor.
E no final, se refletirmos sobre o que de fato aconteceu durante a produção dos dois livros narrada aqui, é a insensibilização de Alison. Sei que ela conclui dizendo que a mãe lhe transmitiu uma maneira de lidar com a vida que é fundamental, mas nunca me esqueço das sábias palavras de Nelson Rodrigues a respeito da dor superada: que ao deixar para trás (no caso, destruir o objeto, como aparece na linguagem de Winnicott), só fazemos nos tornar mais indiferentes ante o sofrimento alheio. Acho que esse livro deixa patente que a análise é uma espécie de panacéia, ou para nós brasileiros, um emplasto Brás Cubas. Que esse possa não ser o sentido original da psicanálise nada prova em contrário à minha afirmação, porque é exatamente assim que a sociedade a vê, ou seja, é esse seu significado social.
E sem meias palavras, o livro engana pela referência complexa de Winnicott. Porque no fundo são quase 300 páginas fazendo beicinho, choramingando, batendo o pé porque mamãe e papai não me davam brinquedos e nem boa noite (como a mãe de Proust, quando ele era criança). Então, se hoje eu sou assim, destrambelhada, é por culpa de vocês. E não consigo nem externar que tenho raiva desse descaso, fico sempre na metade do caminho, em tudo. Só queria um abraço, um beijo, uma demonstração de amor... Agora, da primeira à última página, lendo suas desventuras com analistas enquanto desmancha relacionamentos e não consegue escrever sobre o pai ou a mãe, é uma verdadeira tortura. Que me desculpem os fãs, mas esse livro não faz juz à capacidade da autora. E, como disse, lança retroativamente uma luz sobre Fun Home, fazendo com que pareça menos significativo. Afinal ela usa os mesmos artifícios para cativar o leitor, inclusive perdoar a mãe, como havia feito de modo muito mais espontâneo com o pai.
Não é apenas a sua interpretação, mas ela se coloca como referência, o ponto a se avaliar o modo de vida dos pais. Em prova disso, basta ver o episódio de sua primeira menstruação, retomado nesse livro. Como não censurar pais que silenciavam sobre tudo, a ponto de fazer a coitadinha tentar esconder esse fenômeno tão natural e fantástico ao mesmo tempo?
Enfim, eu poderia seguir, mas acho que já ficou claro que não gostei da covardia da autora. O sucesso do livro prova, no entanto, que é mais vantajoso dar ao leitor exatamente o que ele espera. A conta bancária engorda e a vaidade pelo elogio silencia tudo o mais. E já que estamos falando de silêncio, nós também ficamos calados, absortos, mera audiência, como ela, a autora, tantas vezes aparece assistindo o espetáculo do palco.