Krishna.Nunes 25/03/2021Leitura necessáriaGen Pés Descalços é um relato de sobrevivência do próprio autor, Keiji Nakazawa, que era uma criança em Hiroshima quando a cidade foi devastada pela primeira explosão atômica da história. Nos quadrinhos ele é representado por Gen, um menino esperto, cheio de vivacidade e dono de um caráter inabalável. Nessa edição brasileira dividida em 10 volumes, o primeiro arco conta os últimos meses da vida na cidade antes da explosão da bomba.
A obra deve figurar ao lado de outras que se propuseram a narrar guerras e conflitos - Maus, Persépolis, Gorazde, Palestina, Notas sobre Gaza, O Fotógrafo e outras - como uma das leituras obrigatórias dentro dos quadrinhos para compreender o século XX.
Se por um lado os japoneses são normalmente pintados como racistas, xenofóbicos e com um senso de orgulho desmedido, em Gen fica claro que eles também foram tratados com uma brutalidade sem tamanho. Não é de espantar que os britânicos e americanos fossem vistos como bárbaros e demônios. Entretanto, o governo e os militares não deixaram de se aproveitar desse nacionalista exacerbado japonês para propagar notícias falsas, induzindo a população a apoiar a guerra e se dispor a lutar até o último homem. Tudo pelo orgulho.
O sol, onipresente, parece representar não apenas a bandeira imperial e a passagem do tempo, mas também testemunhar inclemente o sofrimento daquelas pessoas. Perto do final, sua presença é cada vez mais frequente, remetendo ao calor de mil sóis produzido pela explosão.
As falas pacifistas do pai de Gen parecem ingênuas e a construção das personagens não é elaborada; eu não sei se isso foi proposital ou é uma deficiência narrativa do autor. Na verdade, a própria arte do mangá me pareceu simplória se comparada aos grandes quadrinhistas ocidentais que conheço e eu não sou capaz de avaliar se isso é uma característica do estilo japonês. Mas é um relato autêntico e sincero das dificuldades nos meses que antecederam o bombardeio definitivo. O drama é crescente e nós nos sentimos acompanhando uma contagem regressiva à medida que o desfecho se aproxima.
Quanta miséria seria necessária para que a população se revoltasse contra a guerra e contra o imperador? Essa pergunta ficou sem resposta, porque a guerra foi finalizada de maneira abrupta e cruel. Estava claro para os americanos que quem dominasse primeiro a tecnologia para armas nucleares finalizaria o conflito, e eles investiram nisso. Nesse ponto, um erro histórico é cometido pelo autor, que coloca Albert Einstein como responsável pela bomba, quando ele na verdade não participou do projeto Manhattan.
Um outro erro, talvez de julgamento, foi o de atribuir a causa dos bombardeios e as consequências da guerra somente ao excesso de nacionalismo e do clima militarista do país, e nada ao racismo ocidental e ao jogo de poder da guerra fria que se descortinava. Isso com certeza torna a narrativa bem mais palatável para os leitores ocidentais.
O vigor da narrativa é tal que muitos japoneses, ao lerem o mangá, chegaram a perguntar se aquilo havia acontecido de verdade. Mas apesar de tudo, Gen é uma obra repleta de otimismo. A ideia de que tudo em breve estará melhor percorre toda a obra. "O trigo pisoteado produz raízes fortes" é uma imagem constante de resignação e esperança.