Che 08/07/2017
AUTO-ADULAÇÃO DESLUMBRANTE
Vamos ser sinceros: essa famosa saga limitada em quatro tomos da Marvel é um tremendo 'umbigocentrismo' voltado para a própria Casa das Ideias fazer um endeusamento interno aos seus heróis, tentando mostrar com nós, leitores, devemos enxergá-los: com perplexidade e admiração. Mas o traço é bonito demais e acaba compensando um roteiro apenas ok.
Os até então razoavelmente pouco conhecidos Kurt Busiek (roteiro) e Alex Ross (desenho) foram catapultados ao estrelato da nona arte depois dessa pequena série, cuja leitura é de fato leve e passa bem até o final (o qual é um pouco truncado e não guarda nenhuma revelação ou momento mais brilhante). Ross faria bonito de novo poucos anos depois, com a ótima "Reino do Amanhã".
Busiek não me impressionou. Fez um roteiro redondinho, funcional, cuja força-motriz é basicamente um amontoado de auto-adulações aos heróis da Marvel, vistos sempre com distanciamento pelo fotógrafo e jornalista Phil Sheldon, que vai acompanhar o surgimento de novos mascarados desde o começo da Segunda Guerra Mundial até meados dos anos setenta, mas sempre à distância e sem conhecer bem nenhum deles. Shelson não é um personagem particularmente denso ou memorável, tendo um arco dramático nulo, servindo só para auto-indulgências como o fato de publicar, em certo ponto do enredo, um livro chamado... "Marvels" (o que, além de um exercício metalinguístico vazio, lembra como o título em si mesmo é outro auto-elogio, já que significa algo como 'maravilhas').
Tem, no entanto, vários momentos divertidos e aproveitáveis, que vão ser mais ou menos interessantes a depender do seu conhecimento prévio e/ou fanatismo puro e simples pelo universo Marvel. No meu caso, esse conhecimento prévio é apenas razoável e o fanatismo inexiste, de modo que não consigo me encantar só com o conceito em si de saber que um reles mortal na HQ viu pela primeira vez o Capitão América ou o Homem de Ferro. Das referências, a que mais aproveitei foi a do último tomo, envolvendo Gwen Stacy, cuja derradeira história marca o fim da Era de Prata e tive o prazer de conhecer há pouco tempo.
Há tentativas de criar alguma polêmica bem bolada acerca de como alguns humanos não-poderosos enxergavam os poderosos com desconfiança e medo (especialmente no segundo volume, sobre os mutantes), mas Busiek nem sempre tem coragem de se aprofundar, inclusive abandonando repentinamente a promissora sub-trama da pequena mutante adotada, umas das que mereciam render mais e tinham grande potencial dramático.
O deslumbre com "Marvels", de qualquer forma, acaba existindo sim. E o responsável por isso tem nome e sobrenome: Nelson Alexander Ross. O traço de exatidão quase fotográfica do desenhista é um espetáculo à parte, pra saborear até perder o fôlego com a precisão de suas telas dignas de figurar em qualquer exposição no Louvre. Não que ele se limite em ser 'realista' pura e simplesmente: há elipses e lacunas na sua arte que são usadas de forma inteligente pelo artista, de modo a fazer seus quadros estonteantes se parecerem com um sonho banhado em nostalgia - o que casa perfeitamente com a proposta que a história busca.
Se vale a leitura? Vale. Mais pela qualidade do desenho do que pelo roteiro, que não traz absolutamente nada de memorável e se limita a ser um compêndio de referências auto-elogiosas da Marvel. Por sorte, a confiança no taco de Ross acabou rendendo ótimos frutos no âmbito visual e apequena as limitações do enredo.