Maitan 18/02/2018
Entre a vigília e o sonho, uma névoa espessa
“Cada um de nós leva no fundo da alma uma tragédia que se empenha por ocultar do mundo. E essa tragédia íntima é a que desbarata energias, acaba com a saúde e produz no espírito um estado constante de alarme”. Palavras de María Luisa Bombal em entrevista de 1939. Poucos anos antes, em 1935, a autora chilena estreava (e surpreendia seus contemporâneos) com A última névoa, novela que marcaria o início de uma nova literatura feminina latino-americana, dotada de uma subjetividade profunda em contraste com o realismo de cunho social que se fazia até então.
E me pergunto por que sempre salientamos o fato de a literatura ser feminina, destacando-a da literatura universal. Afinal se pode separar a literatura em gêneros masculino ou feminino? Do ponto de vista histórico, isso nos revela apenas alguns obstáculos que a mulher tem de enfrentar para se fazer presente no circuito literário (da primeira metade do século XX para cá, talvez tenhamos avançado algo) e também o escasso ou nulo protagonismo da mulher na ficção. Para María Luisa Bombal, a questão da condição da mulher na sociedade é tema incontornável – pois vivia esses conflitos visceralmente – e é também um dos disparadores de suas narrativas. Mas não só.
A última névoa é uma novela silenciosa, uma narrativa subjetiva extremamente veloz, em que situações, cenas, anos se passam sem que percebamos, de uma frase para outra. Bombal é tão habilidosa, que nos conduz pela mão, sem ruídos, para atravessar esses períodos extensos em tão poucas linhas. É uma aula. Quem dera todos os romances fossem assim, seríamos poupados de muitas, mas muitas páginas inúteis. Mas se alguns romances se estendem mais do que deveriam, a sensação é de que nesta novela fala-se menos do que se poderia. A leitura é tão prazerosa que a vontade é de que essas poucas linhas se estendam por dezenas e dezenas de páginas.
O prazer da leitura, para além da narrativa fluida, está associado à poesia com que a autora distribui as cenas. As imagens evocadas são das mais belas, e tudo corrobora com o clima nebuloso, de uma brancura amarga e uma claridade densa, que paradoxalmente nos confundem as fronteiras entre aquilo que é vivido e o que é imaginado, entre aquilo que se experiencia em sonho ou apenas pelo olhar cotidiano mais atento.
Em A amortalhada, segunda novela do livro, a protagonista é uma morta que, por uma pequena sobra de consciência relembra momentos de sua vida com as personagens que se despedem de seu corpo durante o velório. Publicada três anos depois de A última névoa, carrega a poesia imagética da narrativa anterior, embora não apresente o mesmo brilho.
A paisagem retratada nas duas novelas tem sua beleza à parte. Tudo se passa em ambientes campestres e nebulosos – literalmente – nevoeiros, neblinas, ruas fechadas em pequenas cidades, mata densa, casas distantes ou abandonadas. A sensação é que durante toda a leitura esse ambiente sensibiliza, à sua forma, a protagonista que narra em primeira pessoa e tem pouquíssimos interlocutores (em A última névoa) ou os discursos e diferentes perspectivas que se entrecruzam (em A amortalhada).
A resenha de Cândida, do Compre mais um livro, tem no título uma imagem que resume bem esse clima (e do qual eu me apropriei para dar título a esta resenha): “Embaçamento entre vigília e sonho”. Aliás, é a primeira vez que vejo um título só com boas resenhas. A relação dos temas sono e morte com Hipnos e Tânatos, que fez a Renata do site Água-marinha, expande essa observação. Há algo de mítico naquilo que dispara a escrita desses textos, pois sua composição é extremamente elevada e de alguma forma faz essa qualidade permear toda a narrativa, mesmo nas questões mais concretas como a crítica da condição da mulher.
As condições sociais e econômicas emergem, hora ou outra, em meio a intensa poesia, e podem causar algum incômodo: a mulher perturbada pela ociosidade e sua condição doméstica, ao mesmo tempo causada pela ausência de amor no casamento arranjado ou sem sentido e pela condição financeira privilegiada. O lamento da falta de amor como causa de uma vida vivida em vão pode apontar duas coisas: a falta de uma preocupação menos elevada (a sobrevivência em condições extremas, por exemplo) ou a sujeição psíquica da mulher em relação ao homem. Seria por essa condição privilegiada que sua obra se inclinaria ao mergulho subjetivo em detrimento do relato social de seus contemporâneos? São questões que podem ser feitas, paralelamente ao extenso material de caráter psicológico que a autora nos lega.
A própria biografia de María Luisa Bombal é uma preciosidade à parte: viveu entre o Chile, a França, a Argentina e os Estados Unidos; teve dificuldades durante a vida com os papéis femininos na sociedade, para os quais revelou extremo desconforto ou negação para desempenhá-los, fazendo-a começar e rapidamente terminar relacionamentos; tentou um homicídio e um suicídio; rompeu com a própria filha e morreu isolada em decorrência do alcoolismo. Sua amizade com Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, García Lorca e Pirandello revelam algo da recepção de sua obra, que se resumiu a essas duas novelas e alguns poucos contos esparsos. A introdução da resenha de Carolina von Holdefer, do Livros abertos, esmiúça essas passagens.
Por fim, quero destacar o terceiro texto de Bombal no livro, a breve crônica poética Washington, cidade dos esquilos, que se não tem o mesmo estatuto das duas novelas, nos apresenta à maturidade de María Luisa Bombal (há um erro de digitação ao final da crônica, que marca como data de publicação o ano de 1934, sendo a data correta 1943), com extremo domínio da poesia em prosa que ela já havia esboçado nos textos anteriores. O bem-humorado texto é de uma qualidade literária impressionante, com sobreposições de imagens belíssimas, de uma poesia que trata a realidade mais simples de uma forma quase mágica.
A edição da Cosac Naify vai ao encontro do brilho de seu conteúdo, com uma capa que remete à nevoa que sutilmente apaga os traços do título e com páginas em tons cinza em um degradê do claro para o escuro, das margens internas para as externas. A tradução de Laura Janina Hosiasson é excelente, assim como seu posfácio, que nos apresenta detalhes da vida e da obra de María Luisa Bombal, finalmente um dos grandes nomes da literatura latino-americana da primeira metade do século XX.