Antonio Luiz 14/03/2010
Uma ficção científica quase atual
Este livro se destacou em 2008, como o primeiro romance de ficção científica internacional publicado no Brasil em vários anos a não soar muito antiquado.
Explique-se o paradoxo. A partir de 2006, o lançamento de obras de Isaac Asimov, Orson Scott Card, Ursula K. LeGuin, Philip K. Dick e William Gibson (entre outros) permitiu ao aficcionado do gênero quebrar um longo jejum. Mas esses títulos, mesmo os inéditos no Brasil, foram escritos há pelo menos vinte anos, como a trilogia Sprawl de Gibson. Ou mesmo mais de 50 anos, no caso de "O Fim da Eternidade", de Asimov, no qual uma agência que controlava os abismos do tempo, com uma tecnologia de muitos milênios no futuro, mantém rotinas de trabalho e estereótipos sexuais típicos de um escritório de 1955.
São boas aventuras com ideias que ainda podem fazer pensar, mas os pormenores de sua concepção de futuro, mesmo de sua linguagem, tornaram-se anacrônicos e datados. Valem uma leitura, mas perderam a capacidade de apresentar-se não apenas como uma fantasia à maneira de "Harry Potter", mas como um futuro possível, atraente ou ameaçador, que instiga o leitor a pensar no que pode ser feito para evitá-lo ou realizá-lo.
"Tempo Fechado", de 1994 ("Heavy Weather", no original), confronta o leitor com um retrato ainda verossímil de uma década de 2030 submetida aos resultados de décadas de destruição do ambiente, caos econômico e descaso pela saúde pública. Veículos robóticos ultraleves proporcionam transporte com um mínimo de emissão de gases, materiais inteligentes e recicláveis são comuns, qualquer um pode ter a Biblioteca do Congresso em seu laptop, mas boa parte dos EUA foi desertificada, desastres climáticos são rotina e milhões sofrem e morrem por doenças que, no século XX, eram inofensivas ou estavam bem controladas, de micoses e furúnculos a tuberculose e Aids.
O ar está por toda parte carregado de poeira e poluição química e mesmo pessoas ricas têm dificuldade para conseguir mais do que um fio de água desagradavelmente clorada para suas necessidades. Lavar-se com esponjas embebidas em um desinfetante que faz arder até a alma, para evitar furúnculos contagiosos e outras perigosas doenças de pele, é uma rotina.
Em 1988, o autor de Tempo Fechado escreveu "Islands in the Net", (“Piratas de Dados”, na tradução brasileira) que lhe valeu ser considerado o co-criador do subgênero cyberpunk, junto com Gibson, que iniciou sua trilogia em 1984. Mas ao contrário do colega Gibson, inclinado a retratar personagens cínicos e insensíveis, abúlicos joguetes do sistema, Sterling focaliza gente com ideias, sentimentos e iniciativas, mesmo se elas não bastam para salvar o dia.
Um jovem muito doente e desesperançado amadurece, encontra dignidade e descobre seu valor ao entrar para uma equipe reunida para acompanhar a formação de um tornado gigante, previsto pelo cientista que a lidera, mesmo se nada pode fazer para evitá-lo. Trata-se de um “F-6”, um fenômeno além da Escala Fujita que classifica os tornados de F-1 a F-5 (estes últimos, com ventos de velocidade superior a 419 quilômetros por hora).
Um dos sintomas de envelhecimento da trilogia de Gibson é a linguagem que, de futurista, tornou-se anacrônica: inventou expressões com sabor curiosamente saudosista, como “cowboy de console” para o que na vida real veio a ser chamado de “hacker”. Ao contrário, Tempo Fechado fez as metáforas correrem do mundo da informática real para o dia-a-dia: na sua linguagem, todo mundo é “hacker”, o meteorologista “haqueia” furacões, o mecânico “haqueia” motores – o que ainda soa convincente como gíria futurista. Infelizmente, o sabor desse jogo de linguagem se perdeu na tradução de Carlos Angelo, que verteu por “fuçar” o "to hack" do original.
O tradutor também não foi feliz ao verter por “Trupe Intempestiva” o nome original da equipe meteorológica, “Storm Troup”. Algo como “Trupe de Choque” teria sido mais adequado, pois o original faz uma alusão irônica aos stormtroopers ou Sturmtruppen, as “tropas de choque” ou “de assalto” do III Reich, pois a inteligente turma de rebeldes e excêntricos reunida em torno do matemático-meteorologista Jerry Mulcahey é o exato contrário da brutalidade impessoal das tropas nazistas, embora se mostre comparável a elas em eficiência e disciplina e exiba uma coragem moralmente superior. Por outro lado, ficou preservado o uso de “mega” como sinônimo coloquial de “muito”, extrapolando um uso já comum na publicidade e na gíria adolescente.
Depois de sua trilogia pioneira, Gibson esperou que o mundo real alcançasse seu imaginário cyberpunk. Continua a escrever histórias semelhantes em espírito, mas que deixaram de ser especulação sobre o futuro para ser quase uma crônica do presente. "Reconhecimento de Padrões", seu romance de 2003, trata de internet, busca de dados, corporações, logomarcas e máfias internacionais em tramas não muito diferentes de Neuromancer (salvo pela ausência das próteses cibernéticas), mas com pouca ou nenhuma extrapolação tecnológica e científica.
Esse tipo de literatura tem sido chamado de slipstream, “cone de aspiração”. O termo foi originalmente referente à zona de baixa pressão (“vácuo”) por trás de um veículo que corre na atmosfera, mas Sterling o aplicou para algo que fica entre ficção especulativa e literatura mainstream. No caso de "Reconhecimento de Padrões" e de sua seqüência, "Spook Country", existe muito pouco que a diferencie de um romance mainstream pós-moderno, salvo uma vaga sensação de estranheza, de se estar vivendo algo que um dia foi fantasia.
Já Sterling usou o espírito anárquico e distópico do subgênero cyberpunk para “fuçar” ou haquear o futuro para além das concepções e problemas das obras dos anos 80, mesmo à custa de mudar o espírito e o ethos do gênero. Aquelas eram ambientadas em metrópoles intermináveis das quais mal se entrevia a natureza, vítima passiva e silenciosa dos abusos humanos (mencionava-se a extinção dos cavalos, dos golfinhos, a contaminação dos mares...), relegada a escanteio pela presença maciça da tecnologia e da realidade virtual.
Em "Tempo Fechado", ao contrário, a natureza toma violentamente o centro do palco e as tecnologias cibernéticas futuristas, ainda que presentes, são leves, frágeis e limitadas. Não podem mais do que acompanhar o desastre, descrevê-lo conscienciosamente e amenizar suas conseqüências, como as pobres, mas modernas e eficientes roupas de papel distribuídas a refugiados e usadas pela Trupe. Ficaram reduzidas a atores coadjuvantes.
As reflexões sobre as atitudes que provocaram o caos, bem como as que levam as pessoas do futuro a aceitar passivamente a convivência com tais horrores e com o risco permanente de serem mortas por um desastre climático ou sanitário, refugiando-se em suas realidades virtuais, é uma nota dominante na narrativa e continua a incomodar. Ao lado disso, há uma sociedade secreta empenhada em usar desastres e epidemias como meio de reduzir o excesso de população e “salvar a Terra”.
A bem da verdade, o romance já mostra os primeiros fios de cabelo branco. Nele se reflete a concepção de um Estado à mercê de uma internet e de um mercado negro intrinsecamente irresistíveis e ingovernáveis. Nele, a economia sob supervisão dos governos é apenas a fração menos importante da economia real e quase que só diz respeito às necessidades básicas da gente pobre. A maior parte da riqueza real circula nos mercados negros e os ricos usam moedas emitidas por organizações criminosas, como a Mão Negra da Córsega, as Tríades Chinesas e a Máfia Siciliana. As leis nacionais, inclusive as de propriedade intelectual, parecem ter perdido a maior parte de sua relevância, mas de maneira aparentemente inconsistente, os advogados são muito importantes, inclusive para a Trupe.
Essa concepção começou a perder credibilidade em 11 de setembro de 2001, com as medidas tomadas pelos EUA e aliados para impedir o uso da internet, paraísos fiscais e fluxos financeiros desregulados por organizações terroristas. Com o neoconservadorismo da era Bush júnior, ficou claro que o Estado continuava com sua força repressiva intacta, que a "anarquia" da internet e dos fluxos financeiros clandestinos são algo que os governos das grandes potências aprovam e sustentam na medida em que convém às necessidades do sistema que defendem. Quando essa anarquia se torna disfuncional, o controle pode ser retomado na medida em que for necessário. Não existe qualquer impossibilidade técnica.
A crise financeira de 2008 e as maciças intervenções financeiras pós-keynesianas que a seguem mostram que também nada há de inevitável no aparente recuo do Estado ante o mercado e que as moedas nada significam sem a capacidade e a vontade política de um governo que as sustente. Com isso, o subgênero cyberpunk – para o qual a fraqueza do Estado é um ingrediente tão essencial quanto a presença de redes de computadores e informática de ponta – talvez tenha chegado ao fim do seu ciclo, junto com o neoliberalismo. Será preciso inventar outros pesadelos.
Mas essa é outra questão. Mesmo se as concepções sociais e políticas se mostram simplistas e provavelmente estão condenadas a serem vistas como datadas dentro de mais alguns anos, o autor concebe um cenário que merece respeito e um ponto de vista digno de ser levado a sério.
Não que pretenda ser uma previsão literal do futuro. O próprio autor, decerto, preferiria que a advertência nela implícita servisse de algum modo a evitar a sua realização, mesmo se em várias passagens do livro dá a entender que o desastre social e ambiental, o “tempo fechado”, se tornou irreversível nos anos 40, 60, ou 80, em todo caso, antes da publicação do livro. Talvez tenha razão: a tragédia do Katrina, de 2005, pode já ter sido uma consequência do aquecimento global. E mesmo que tenha ajudado a eleger, nos EUA, um presidente que põe o ambiente no alto de suas prioridades, pode mesmo ser tarde demais para fazer mais do que amenizar a catástrofe.