dormideira 04/02/2021Um livro tristeNever let me go (Não me abandone jamais em pt-br, editado no Brasil pela Companhia) é um livro de ficção científica no formato de memórias, de ordem mais ou menos cronológica, com algumas idas e vindas. A grandiosidade da obra vem menos pela distância entre a forma memorial e o gênero de ficção científica, e mais pelo acúmulo de pequenos detalhes verossímeis que, no final, remetem quem lê à própria vida.
Os temas tratados são amizade, romance, mas principalmente memória e, talvez, a fugacidade da vida perante à sociedade. Além desses, eu também destacaria a questão do que é humanidade, a reificação (palavra que sempre me lembra São Bernardo, do Graciliano, acho que porque a minha edição tinha um breve posfácio do João Luis Lafetá fazendo esse paralelo) enfim, a reificação das pessoas, e ainda a importância da arte e da educação.
A diferença entre a Inglaterra real (badunts) e a do livro é um pouco temporal: o tempo da narração poderia ser o início dos anos 2000, mas tem referências a décadas tão anteriores como os anos 50. A maior diferença ou o maior traço de ficção científica é que trata-se de um entroncamento de um universo paralelo em que a ciência, mais ou menos desde essa década, passou a ser capaz de curar várias doenças com a doação de órgãos vinda de clones (!!). Spoiler alert: é a vida de uma clone com um monte de amigos clones que no final viveram para doar órgãos e morrer.
Aliás, ao contrário do que o trailer e algumas resenhas indicam, isso não chega a ser o centro do enredo do livro ou sequer um grande segredo a ser revelado, sendo mencionado aqui e ali ao longo da história, exceto quando, no final, se impõe a irrevocabilidade da morte.
Sendo ou não o centro da obra, isso faz com que para a personagem principal esse seja um mundo distópico. Não estranhamente, essa diferença praticamente não aflige quem se beneficia do sistema. Inclusive é tudo perfeitamente visto como benéfico e, mais perto da grande-revelação-no-final-daquilo-que-já-se-sabia, menciona-se que é até controverso falar muito disso. Sounds familiar?
De qualquer forma, o livro todo é feito de encadeamentos de lembranças, mais ou menos afetadas pela perspectiva presente da narradora-personagem Kath, como através de impressões e imprecisões (ou mesmo indecisões), que se antecipam ou levam umas às outras.
Essas lembranças se passam em boa parte na escola interna onde Kath estudou, Hailsham, e nos anos seguintes, se centrando principalmente nos relacionamentos entre ela e seus amigos Tommy e Ruth.
Há alguns momentos de virada da narrativa, como falei, especialmente no final. Antes disso, todos os momentos importantes são assinalados pela própria narradora, o que pode tirar um pouco da surpresa.
É mais ou menos assim: em um parágrafo, Kath diz, quase em tom de confidência, que precisa contar Daquela Vez. Daquela Vez do quê, se perguntará o ingênuo leitor. E, no final, das contas é Daquela Vez de uma coisa meio besta, sei lá, Daquela Vez Do Sofá. E pronto, segue a narradora contar sobre A Vez Do Sofá. Em outras palavras, a narração se reserva o direito de projetar importância maior ou menor aos próximos episódios que serão contados, embora isso acabe parecendo mais uma tática para prender quem lê do que uma ferramenta para efetivamente situar a relevância dos eventos em retrospectiva.
Por outro lado, o tom é extremamente natural e coloquial, como alguém que, de fato, relembra e conta uma história. Isso dá um ritmo ao mesmo tempo dinâmico e leve à leitura. De início, é um pouco difícil de se identificar com as personagens, mas esse tom tranquilo e um pouco da expectativa de um Grande Momento ajudam a continuar na narrativa.
A recompensa é se emocionar, e muito. Como eu disse, os mistérios revelados pelo livro são menos a explicação do sistema, que é feita em bloco por uma das personagens (daquele jeito meio clichê de “Agora vou te contar a verdade…”), e também através de indícios do que se passa ao longo do livro. Se trata mais do processo doloroso da narradora de analisar e tentar entender e assimilar o que cada um (ela, Tommy e Ruth) estava pensando ou sentindo.
De novo, é um livro extremamente emocionante que, apesar do sentimento de perda iminente, nos remete ao que nos faz humanos de verdade: as relações que cultivamos e os nossos sentimentos. E um pouquinho de arte, claro.
Conclusão: 9/10. Chorei que nem um bebê. Recomendo.
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https://1brogue.wordpress.com/2021/02/04/um-livro-triste/