Campo Total

Campo Total Carlos Orsi




Resenhas - Campo Total


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Antonio Luiz 27/01/2014

Ficção científica como literatura de ideias
A coletânea “Campo Total e outros contos de ficção científica”, de Carlos Orsi, reúne nove histórias com a proposta explícita de explorar a ficção científica como literatura de ideias. Isso deveria ser quase uma redundância, mas tornou-se tão comum tratar o gênero como uma variante a mais da literatura de fantasia ou de aventuras que a ênfase é necessária.

Tanto melhor se uma história contiver tramas e personagens complexos e bem desenvolvidos (caso do Frankenstein de Mary Shelley, geralmente considerado o primeiro romance do gênero) e nada impede que inclua aventuras, ação, complicações amorosas, erotismo ou linguagem experimental, mas o que caracteriza a ficção científica é especular racionalmente (e de preferência de forma original) sobre as implicações e consequências de dados científicos ou inovações tecnológicas, reais ou supostas. Muitos dos textos mais marcantes de H. G. Wells, Isaac Asimov e William Gibson têm protagonistas rasos e esquemáticos, cuja função é ilustrar as consequências de uma ideia, não cativar o leitor com sua personalidade.

O mesmo se pode dizer da maioria dos contos de Carlos Orsi nesta coletânea, assim como na anterior "Tempos de Fúria" e no romance "Guerra Justa". De cada um desses enredos, não se espere personagens profundos ou uma prosa sutil, mas pelo menos uma ideia instigante. Outra característica do autor é misturar a especulação científica hard com horror ou religião, frequentemente tratados de forma irônica.

Muitas vezes Orsi faz isso de forma interessante e nos melhores casos a trama se desenvolve com naturalidade e consequências surpreendentes a partir da premissa central, sem que se sinta uma mão pesada a forçar reviravoltas e opiniões ao texto. Em algumas abordagens de questões religiosas acontece, porém, de errar a mão no sarcasmo e no panfletarismo e fazer de todo clérigo um vigarista cínico e de todo seguidor um fanático idiota. Não é preciso ser crente para se incomodar quando a ficção cai nesse simplismo inverossímil. O tema merece ser tratado, se não com mais respeito, ao menos com mais veracidade.

Em “A equação”, um matemático prisioneiro desenvolve modelos matemáticos do mercado e do mundo para um comitê de “gnomos de Zurique” que governa o mundo em segredo, paródia das muitas teorias conspiratórias sobre governantes secretos. O matemático não tem outra vida e deixou de desejar os luxos e as “mulheres e homens” que no começo seus carcereiros e patrocinadores lhe forneciam. O assunto é a possibilidade ou impossibilidade de desenvolver equações capazes de modelar a realidade. Se a ideia o interessa, o conto provavelmente o fará pensar, mesmo que seu protagonista seja praticamente uma abstração.

O conto “Um bom emprego” ironiza a ideia de vida após a morte, ou de vida sem corpo, de forma curiosa. Na pós-vida, as “almas” são registros num fantástico sistema de computadores que de forma inexplicada protege a Terra de uma invasão interdimensional desde a pré-história. A única atividade pela qual esses espíritos “existem” é participar de grupos de discussão numa espécie de internet e o “bom emprego” do protagonista é moderar alguns deles. Parece fácil, até que um dos desencarnados tenta escapar de sua condição.

“Toda forma de amor” toca esse fenômeno de forma perturbadoramente fria, mas curiosa. Uma jovem que acaba de passar por um desencontro amoroso e tenta escrever uma canção sobre o amor na internet é contatada por um misterioso poeta respeitado no seu meio, mas conhecido apenas pelo logotipo e pelo pseudônimo. Ao encontrá-lo, descobre que “Grafo”, como se intitula, é antes de tudo um matemático e está interessado em descobrir se a resultante das relações amorosas é ou não nula. A proposta é interessante, mas neste caso a exposição e o desenlace apressados deixaram um pouco a desejar.

“Campo total”, que dá título à coletânea, trata de um experimento científico sobre telepatia que vem a ter consequências inesperadas. De todos os contos deste volume, é o que mais explora a personalidade do protagonista, mas com o único propósito de desconstruí-la (em mais de um sentido) e mostrar que ego e identidade são ilusões. Uma passagem a título de amostra do estilo e da argumentação do autor:

"Daniela me explicou que salas de ganzfeld vinham sendo usadas no estudo da telepatia há anos, mas que o design deste experimento específico era diferente de todos os demais.

– A maioria dos ganzfeld parte do princípio de que existe um ego, uma vontade consciente, que pensa e tenta emitir os pensamentos em direção ao receptor. Minha experiência assume o oposto: que só existem feixes de sensações e de atividade neural, nenhuma vontade.

– Não existe livre-arbítrio, então?

Daniela torceu o nariz:

– Psicólogos e filósofos teorizam, há décadas, que livre arbítrio e identidade individual não passam de ficções convenientes. Mas é mais ou menos como os teólogos que concluíram que Deus não existe, ainda na Idade Média: ninguém tem coragem de dar a notícia para o povão."

“Cardeais em órbita” é o conto menos satisfatório. Neste futuro distante, o Vaticano foi transferido para uma estação orbital e seus cardeais se angustiam e se lamentam pelo fim das canonizações uma vez que os milagres passaram a ser totalmente explicados ou substituídos pela ciência. Debatem em busca de uma maneira de redefinir a santidade de maneira que os fiéis continuem a crer na Igreja e sustentar o clero. O pressuposto não é absurdo, haja vista a dispensa das exigências habituais para canonizar os papas João XXIII e João Paulo II e o recente pedido da Arquidiocese do Rio de Janeiro para que se beatifique de um casal de fazendeiros do século XIX apenas por ter conduzido seus nove filhos à vida religiosa e forçar seus escravos a participar dos rituais católicos. Mas os personagens e seus argumentos são representados de forma tão caricata e panfletária que o texto só prega aos convertidos – ou melhor, aos desconvertidos.

“Disse a profetisa” é mais hábil ao tentar dar a mesma lição. Num futuro pós-apocalíptico, um culto se desenvolve em torno de uma mulher preservada da morte por aparelhos não mais compreendidos, mas incapaz de falar. Um sacerdote alega falar em seu nome, mas o protagonista, seu seguidor, tem um irmão cético que se dispõe a ativar equipamentos capazes de permitir à “profetisa” exprimir o que pensa. Como reage um clérigo ante a possibilidade de que seu Deus se dirigisse aos fiéis sem sua mediação? Apesar de ainda superficiais, neste caso personagens e trama são mais interessantes e convincentes.

Em “Clitoridectomia”, tradição e machismo, não a religião, são o alvo. Num planeta distante, um povo nômade que tem a tradição de impor essa mutilação genital como suposta garantia de que as mulheres sejam fiéis e não deem bastardos à luz. Algumas delas, porém, continuam a manifestar prazer mesmo assim e seus maridos preocupados buscam uma solução mais radical, que cumpre o que promete, mas tem uma consequência inesperada. O tema e os personagens pediriam um tratamento menos frio, mas a solução é engenhosa.

“Nativos” é uma história mais complexa, desenvolvida num planeta colonizado por humanos rudes e violentos. A biosfera nativa foi quase toda varrida e alguns últimos remanescentes, preservados numa reserva, começam a se portar de maneira estranha. Um corregedor interplanetário é enviado para investigar e se envolve por acidente num conflito local entre colonos intolerantes e uma pacífica comunidade satanista. O tratamento irônico do fenômeno religioso retorna, mas desta vez o questionamento é mais sutil, conflitos e personagens mais convincentes e o cenário é original, rico e bem construído. Uma amostra:

"Os cavalos deste planeta são descendentes do animal terrestre do mesmo nome, mas na verdade parecem mais um cruzamento entre rinoceronte e dromedário. A pele dos animais é grossa e no focinho eles têm uma tromba articulada e curta, de não mais de vinte centímetros, que termina numa unha muito dura, um chifre recurvado e invertido, semelhante a um punhal."

“Terror no planeta dos canibais” explora uma questão raramente abordada na ficção científica: animais e plantas de outro planeta, que tenham evoluído desde os primórdios de forma independente da Terra, provavelmente terão uma bioquímica tão diferente que não seriam utilizáveis como alimento por seres humanos. As consequências para os passageiros de uma nave que vem a se acidentar nesse mundo incluem as que se pode imaginar a partir do título, mas chegam a ser ainda piores.

“Visitante” é ambientado num futuro extremamente distante, tanto que a Terra foi desmantelada em operações que envolveram uma reengenharia de todo o Sistema Solar e a humanidade originou descendentes modificados, com estranhos poderes. O conto explora a chamada Terceira Lei de Clarke – “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia” – de tal forma que uma aventura de fantasia envolvendo bruxas, fadas, deuses nórdicos e anões se mostra totalmente interpretável como ficção científica.

“The Schroedinger Show” é um miniconto irônico sobre um popstar que tenta explorar o princípio de indeterminação frequentemente ilustrado pelo conhecido experimento imaginário do “Gato de Schroedinger” em seu espetáculo, mas obtém um resultado oposto ao pretendido.
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Carlos Patricio 09/09/2016

Genial
Melhor livro de FC nacional, com certeza. Virei fã desse cara. Um conto mais criativo e surpreendente que o outro. Todo livro do Orsi é genial, mas este deve ser o melhor. Quem gosta de FC e não ler esta obra, está preterindo qualidade de vida.
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