stsluciano 27/09/2013
Um livro surpreendente
Eu esperava muito pouco de “Corações Feridos”, mas no fim o livro me entregou muito, e me surpreendeu por sua densidade. Quão bom é quando isso acontece? Trazendo a trágica história da vida de duas irmãs gêmeas, Rebbeca e Hephzibah – se achou o nome estranho é porque não conhece a família, e por mais inusitado que seja, seu significado casa bem com o que se verá no livro – filhas de um pastor que vivem na Inglaterra e tem uma rotina familiar envolta em mistérios e segredos.
Não bastasse o clima opressor que a criação de filhos de religiosos pressupõe – mas não é regra, entendam que não é o que quero dizer, estou mais apontando um senso comum que afirmando uma opinião pessoal – uma das gêmeas, Rebecca, é portadora da Síndrome de Treacher Collins, e assim como o personagem de “Extraordinário”, tem uma severa deformidade facial.
Pegue um homem que tem uma fé extremada e você não vai demorar muito para perceber que ele vê o pecado em tudo, assim como tudo que de mal possa acontecer com o pecador se torna prova incontestável da ira divina. Uma filha com uma doença que atinge tão severamente a imagem da pessoa, causando um desenvolvimento disforme da sua face – mas não de seu intelecto – é perfeita para que este homem veja esta filha como algo pecaminoso, monstruoso e outros adjetivos nada honrosos.
Dentre muitos dos desejos do pai abusivo e autoritário aos quais as irmãs têm de se submeter, estão o mínimo contato com o mundo exterior que não aqueles necessários para os serviços da igreja, os serviços domésticos e limpeza da congregação, a estrita observação dos preceitos religiosos – como por exemplo não tomar banho quente (vai que se desperta a luxúria!) – e a opção pela educação domiciliar. Além de, claro, sorrirem quando for necessário, e esconderem Rebecca, a gêmea com a síndrome, ou ao menos tirarem-na dos “holofotes” para que se pareçam com uma família feliz, santa, perfeita.
Sendo criadas apartadas do mundo, e tendo seus conhecimentos limitados dentro daquilo que seu pai – com a conivência da sempre apática mãe – acha religiosamente apropriado saberem, as gêmeas não tem muita ciência de como o mundo funciona, e se perdem mesmo em questões banais como de onde veem os bebês – perguntem à sua mãe fanática religiosa e ganhem uma boa lavada de sabão na boca – como se comportar perante um garoto, e etc. E, claro, não têm acesso a livros, revistas, internet, enfim, nenhuma fonte externa de consulta, ficando à mercê daquilo que os pais acham necessário que saibam.
Mas as irmãs crescem. Enquanto Rebecca é tímida, calada e mais resignada quanto ao seu destino – ao menos é o que deixa transparecer no início – Hephzibah é uma força, linda, cheia de curvas, com os hormônios em ebulição e uma vontade louca de enxergar além do jardim de sua casa. Com muito custo conseguem que seu pai permita que cursem o ensino médio numa escola comum.
Aqui é o começo do livro. Logo de cara sabemos que Hephzibah está morta, e, agora, Rebecca está sozinha, tendo de enfrentar toda a escuridão que paira em sua casa. A grande sacada do livro, em sua primeira parte, é a divisão da narrativa entre as perspectivas de Rebecca, nos contando o período pós-morte de Hephzibah; e de sua irmã, Hephzibah, nos contando o período anterior, os acontecimentos que culminaram com sua morte. Deste modo, sabemos em capítulos alternados, o que aconteceu com Hephzibah e como Rebecca está lidando com aquilo, e, apesar de isso ser feito de uma forma cronológica não muito convencional, sua estrutura foi levada à termo de maneira muito competente pela autora, e funciona sem deixar cacos.
E o interessante é perceber as vozes que nos narram os acontecimentos: Hephzibah é bonita, quer ter uma vida normal, ser feliz, e, principalmente, encontrar um meio de sair de sua casa e se livrar de seus pais, mesmo que para isso tenha de deixar Rebecca de lado, pois se sua entrada no colégio é a chance que ela tem de se destacar e conseguir o que quer, ser associada à irmã estranha, com sérios problemas de formação da face pode ser um grande empecilho. Num primeiro momento torci a cara devido às suas ações, mas, por um segundo, me coloquei em seu lugar: será que posso julgá-la por querer de todas as maneiras fugir de um lar que mais se parece com uma prisão, fazendo tudo o que for preciso ser feito para tanto? Não, não posso condená-la, e, principalmente, pelos momentos em que se preocupa com Rebecca, e sonha ser possível, quando ela conseguir fugir, também resgatá-la.
Já Rebecca é uma personagem mais complexa, que tem uma carga maior para carregar: ela sabe que incomoda, que sua aparência é desagradável, e que nada pode fazer para mudar isso – seus pais não tem boas relações com médicos (como todo agressor) então nunca procuraram para ela tratamentos que podem melhorar a qualidade de vida dos portadores da síndrome. Uma vez mais, me coloquei no lugar da personagem, e, desta vez, tive ciência da minha pequenez. Apesar de parecer frágil, Rebecca é de uma força quase inacreditável, com um caráter que se sobrepõe de tal maneira que é impossível não criar com ela uma ligação de afeto que passa longe do “coitadinha! ela é deficiente!”, mas, sim, reconhece seus esforços, mesmo os mais simplórios e ingênuos, e por isto também parabenizo a autora. – gostaria de explicar melhor, mas não dá para fazê-lo sem entregar o livro.
Gostei da cascata que a autora construiu para nela estruturar seu texto. As revelações, os desdobramentos, tudo vai surgindo de forma crescente e prende o leitor a cada página. Se a gente entende logo que há algo errado no pai pastor meio louco, não somos capazes de imaginar até que ponto vão seus abusos. Mais um ponto pra autora. Com sua narrativa, ela nos faz sofrer com as irmãs, nos sentimos isolados com elas; a solidão, o medo o desespero, o clima denso de catástrofe que sempre ronda as duas, tudo é palpável e nos atinge.
É um livro certeiro, bem pensado, e executado. Gostaria de ser surpreendido assim mais vezes.
Resenha originalmente publicada aqui: http://www.pontolivro.com/2013/09/coracoes-feridos-de-louisa-reid-resenha.html