jota 15/04/2014Quesadillas e tortillas surreaisFesta no Covil (Companhia das Letras, 2012) foi meu primeiro contato com a literatura de Juan Pablo Villalobos. E que contato: ótimo livro, divertido o tempo todo, umas das melhores leituras que fiz em 2013. Um relato breve, preciso e muito bem-humorado, um recorte de uma parte do México - a do narcotráfico, sobretudo, vista pelos olhos do filho pequeno de um traficante.
Em Se Vivêssemos em Um Lugar Normal (Companhia das Letras, 2013), o personagem principal também é um garoto que faz reflexões típicas de adultos. Então esperava coisa parecida do livro, principalmente pela abertura do primeiro capítulo – três palavrões numa frase curtíssima e muitos mais ao longo de toda a história. Da mesma forma, temos aqui um recorte da periferia de uma cidade mexicana durante um período catastrófico que o país latino do norte viveu.
Os personagens formam uma família de esfomeados comedores de quesadillas, prato que a mãe, especialista em produzir melodramas domésticos, também produz diariamente para o consumo de todos eles. O pai, professor de educação cívica, devotado ao helenismo é, como diz a editora brasileira do livro, “mestre em propagar todo tipo de insulto.” São nove pessoas vivendo numa casa pequena e desconfortável, uma “caixa de sapatos” e, por conta do pai, todos os filhos têm nomes gregos: a única menina se chama Electra e o primogênito, Aristóteles.
O narrador é Orestes (ou Oreo, como o biscoito da Nestlé), garoto da periferia de Lagos de Moreno (no estado de Jalisco); ele pinta desse lugar e de sua grande família um retrato muito pouco agradável, mas quase sempre engraçado, mesmo quando se encontram a um passo de uma tragédia. Afinal de contas, é através deles – ou de seus nomes e de certas situações que vivem – que se estabelece uma relação do México com a Grécia. Sem os deuses do Olimpo para trapaceá-los ou ajudá-los – ou então eles entram disfarçados na luta de classes que se verifica durante a trama. (Curioso é que um dos oponentes é uma família de descendentes de poloneses. Enfim...)
Também às vezes Oreo insere algum comentário filosófico sobre si mesmo ou os membros de sua família ou ainda sobre a realidade bruta em que vivem, especialmente quando as coisas parecem assumir ares de grande tragédia. Como quando um grande empreendimento imobiliário surge para ameaçar de destruição o barraco onde vivem. A coisa pode passar de, digamos, um estado aristotélico para um estado socrático em pouco tempo. (E são às vezes as pequenas coisas que Orestes diz ou pensa que tornam o livro mais saboroso do que as tais quesadillas diárias de sua mãe.)
O barraco da família fica num lugar que dispensa descrição ou comentários, no morro Puta Que Pariu. Isso mesmo; não sei se existe ou existiu tal lugar em Lagos ou se foi outro exagero do autor, embora em certos países latino-americanos a realidade muitas vezes suplanta a ficção. A Colômbia teve o realismo mágico de Gabriel García Máquez, o México de Villalobos é pródigo em surrealismo. Daí que os personagens, ou pelo menos o menino Orestes quer deixar de viver num lugar surreal e passar a viver num lugar normal, como diz o título da obra.
Pois eles não vivem num lugar normal e tampouco num tempo normal. A ação se desenvolve nos anos 1980, uma época politicamente conturbada no México, faltava muita coisa, havia desemprego, corrupção, hiperinflação, etc. Qualquer semelhança com a atual Venezuela seria mera coincidência? Não: não apenas é surreal como é trágica a história de um país em que o próprio presidente, um déspota ou ditador, manda prender adversários políticos para acabar com a oposição, reprime a imprensa e estimula elementos motorizados a atirar para matar estudantes e populares que se manifestam contra o estado bolivarista de coisas absurdas que seu governo desastrado impôs à Venezuela. Com a leniência do Brasil, registre-se...
Bem, de volta ao livro sem dele ter exatamente saído, Villalobos escreve clara e saborosamente, quase todos os capítulos são bastante engraçados ou curiosos, então a leitura flui gostosamente; podemos até ficar com vontade de experimentar algumas das especiarias mexicanas feitas de milho que a mãe de Orestes prepara diariamente – são tantas ou o alimento é tão usado na cozinha mexicana que a certa altura ele registra que “o mundo do milho era amplo e vasto.” Com razão; e tome tortillas e quesadillas no café da manhã, no almoço e na janta. E muito prazer com este livro de poucas páginas, mas extremamente pitoresco, saboroso, interessante.
Lido entre 13 e 15/04/2014.