Anna Laitano 06/01/2015Simples, ousado e permeado de questões importantesEvening Spiker é filha da toda-poderosa Terra Spiker, criadora da Spiker Biopharm, uma gigantesca empresa farmacêutica que mais parece uma base militar secreta. Ao sofrer um acidente que quase custa sua vida, ela acaba sendo transferida do hospital para o complexo da empresa da mãe, onde é tratada e passa a se recuperar. Lá, ela passa a trabalhar em um projeto de criação do ser humano perfeito, uma espécie de maquete holográfica na qual ela se distrai na fria empresa. Lá, também, conhece Solo. Um jovem de sua idade, que trabalha para sua mãe, mas parece esconder muito por trás da fachada de bom-moço.
Em pouco tempo, Eve acaba atraída por Solo e ele lhe revela segredos que vão muito além da imaginação. Sem poder deixar de saber o que descobriu, ela se depara com questões que a deixam de mãos atadas. Antes que possa escolher em quem acreditar, mais coisas inesperadas e impossíveis acontecem para atordoá-la. Porém, não há tempo para indecisão, pois ela deve tomar uma decisão antes que seja tarde demais para reverter os danos.
A princípio, a narrativa é dividida entre Evening e Solo, mas, depois da metade um novo personagem aparece para mostrar sua perspectiva. Isso, é claro, possibilita que conheçamos mais de cada um deles individualmente e que entendamos como cada um enxerga as situações ao seu redor. Acredito que essa seja uma opção inteligente e, com a inserção de outro personagem tardio, a história se tornou ainda mais rica, pois, graças a os indagamentos e pensamentos cada um, questões importantes são lançadas. Mas já voltaremos a isso.
A narrativa é linear, contando os acontecimentos que se seguem ao acidente de Eve, sua estadia na Spiker e o rumo improvável que sua vida toma depois de conhecer Solo. Algo interessante é que, por co-escreverem o livro, o casal de autores conseguiu se passar muito bem tanto pela voz da moça quanto do rapaz, como poucos escritores conseguem – geralmente, um dos dois lados fica estereotipado ou idealizado demais.
Eve é interessante. Tento não usar essa palavra para abrir a descrição de um personagem, mas, no caso, é a verdade. Há algo de abstrato nela, porém, real. Por vezes eu não sabia se gostava ou não dela, mas acreditava em sua veracidade. Veja bem, ela não é fraca, mas tampouco é a líder de uma rebelião; ela simplesmente não segue nenhum padrão pronto das personagens femininas com as quais temos nos acostumado nos livros atuais. Ela é simplesmente uma adolescente. Ponto final. Quão arriscado e genial não é isso?
Solo não é tão diferente de sua parceira no quesito. Isto, porque ele tampouco é um romântico incurável, ou rebelde solitário e misterioso. Ele tem uma motivação e a segue, apesar de algumas dúvidas e inseguranças no caminho. Talvez ele seja levemente menos desenvolvido do que Eve, mas, ainda assim, é crível e consegue se destacar na mesmice.
Aislin, embora não protagonize, também fez por merecer seu parágrafo. Apresentada como sem-noção, ela mostra ser uma ótima e doce amiga, pronta para apoiar em qualquer situação. Juntando com o personagem que aparece depois, temos uma dupla que apesar de totalmente diferentes, são adições importantes à história e que podem, com certeza, continuar dando algo especial à trama nos próximos volumes.
O romance é ousado. Se inspirar na história da criação bíblica e usá-la como ponto de partida é nada menos do que muito ousado. Há riscos fortes quando se tenta fazer releituras, mas, nesse caso, as chances de fracasso eram grandes. Apesar disso, os autores conseguiram passar no teste e entregar uma obra sagaz e que não desrespeita as crenças alheias.
Todos os elementos principais da criação estão lá. A maçã, que é o ponto de início da história, o que é totalmente coerente, pois, assim como na história bíblica, ela representa o conhecimento proibido – afinal, é por causa da maçã que Eve sofre o acidente, é por causa do acidente que vai parar na Spiker, e é por estar lá que descobre muito mais do que jamais imaginara. Há também Eva, que, obviamente, é Eve. Adão, no caso, Adam. E a serpente, que me fez pensar bastante, mas, concluí, é Solo. Afinal, ele é quem tenta Eve e oferece o que seria o "conhecimento proibido". O que, portanto, encaixa bem, pois Terra, a toda-poderosa seria uma figura de Deus (e, por ser a mãe, poderia muito bem ser chamada de a criadora de Eve), e que negou o conhecimento à filha. Portanto, repito: quão ousado e genial não é isso?
Além de toda as referências maravilhosas e bem-colocadas, a história também aborda pontos éticos, morais e existenciais, sempre lançando questionamento, mas sem nunca respondê-los, o que entra na mente do leitor e fomenta o pensamento e a auto-indagação, algo, aliás, que todo livro deveria fazer.
Mas o que mais me agradou, talvez, foi o fato de que esta foi uma daquelas raras vezes em que posso dizer que o romance não foi forçado, nem exagerado, nem desproporcional. Os dois são solitários a sua própria maneira e se atraem. Simples assim. Portanto, é claro, eu temi que fossem adicionar um elemento e transformar o que estava simples e bom em algo desnecessariamente dramático. E embora eu não vá contar se isso acontece ou não, eu posso dizer que os autores souberam concluir o quesito romance de forma que não desapontou.
Mas, já que estamos falando de uma trilogia, vocês talvez queiram saber sobre o processo de serialização (a divisão da história para os outros volumes, a conclusão neste, etc.). Por ser um livro curto, considero que ele cumpre o que se propõe. Para o meu gosto pessoal, talvez tenha faltado um pouco de ação, mas, honestamente, há tanto outros pontos positivos que a balança se inverte em poucos segundos. Contudo, o melhor é que embora a história ainda possa dar pano para os outros livros, o final foi bastante redondo, o que quase sempre é um ponto positivo gigantesco. Ou seja, o leitor não sofrerá de insônia esperando o próximo volume e nem se sentirá compelido a continuar. Provavelmente, porém, é exatamente isso que o fará continuar, querendo descobrir qual das muitas possibilidades corresponderá à realidade.
Fiquei um pouco surpresa com a edição bastante simples, mas, nesse caso menos é mais. Agradável e limpa, ela cumpre seu propósito de proporcionar uma leitura gostosa e que flui facilmente sem qualquer tipo de incômodo ou distração – inclusive, nem nota de rodapé do tradutor tem.
Por falar em tradução, fiquei bastante satisfeita com esse ponto também. Talvez tenha achado alguma construção esquisita, mas nada que fosse, de fato, errado e perturbasse a mente. Se vi algum erro de digitação ou tradução, passou despercebido ou foi insignificante ao ponto de já tê-lo esquecido.
Uma história que tem romance, conspiração, ficção-científica, perseguição e aborda pontos super válidos e relevantes. Honestamente, não sei como não recomendá-lo. Uma leitura leve, rápida e despretensiosa que acaba por se revelar ousada e inteligente.
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