Layla 31/03/2017A vida é trem-bala, parceiroVocês já viram como se faz um copo de vidro? Eu, particularmente, nunca fiz um, e no programa Ra-Tim-Bum, que passava na cultura e tinha um quadro musical que com “viu como se faz?” explicava os processos de criação de várias matérias, sempre parecia fácil demais produzi-lo, com aquelas máquinas enormes e rápidas.
Ao pegar um copo na mão, ver seu design e cor e espessura diversas, não vejo como possa ser simples produzi-lo. Deve ser difícil, demorado e trabalhoso. O que diverge completamente da facilidade com que podemos destrui-lo. Quebrá-lo. Não precisa de muito, na verdade. Em questão de segundos, uma mão estabanada pode deixar escapar o vidro escorregadio pelo sabão e pronto. A gravidade e a fragilidade do vidro fazem o resto.
E isso não é só com o vidro. Eu aposto que vocês já quebraram mais do que um copo. Podem ter destruído um prato, um fone de ouvido, um espelho, um celular, a lombada de um livro e tantas outras milhares de coisas. E tudo bem quanto a isso. O ser humano é, por si só e sua natureza, destrutivo.
Mas vocês já tentaram desconstruir um pensamento? Vocês já tentaram desmanchar um achismo, um conceito pré-concebido, um ideal, um padrão? Já tiveram de desmontar um comportamento, uma personalidade, o que você é? É extremamente difícil. Não chega perto da facilidade de quebrar aquele copinho de vidro.
E não chega perto da facilidade de acharmos que sabemos de tudo.
AIDS. Só de ler a palavra, seu cérebro já jogou tudo o que você conhece sobre o assunto contra seus olhos. Você pode ter lembrado o fato de ela ser uma doença auto-imune, pode ter lembrado de que é transferível pelo contato direto com sangue contaminado e pelas relações sexuais. Pode ter lembrado que sabemos quase tudo sobre ela, menos um dos fatores mais importantes: não conhecemos sua cura. Em Diga Aos Lobos Que Estou Em Casa (ou DALQEEC para encurtar), os personagens maravilhosamente escritos nos mostram que a AIDS não é só isso - e, ao mesmo tempo, mostram que a AIDS não é tudo isso.
“Era possível que, sem a AIDS, eu nunca tivesse conhecido Finn ou Toby. Haveria um grande buraco cheio de nada no lugar de todas aquelas horas e todos aqueles dias passados com eles. Se eu pudesse viajar no tempo, seria altruísta o bastante para evitar que Finn pegasse AIDS? Mesmo se isso significasse que eu nunca o teria como amigo? Eu não sabia.”
Nossa protagonista, June, se pega pensando - por incentivo de sua família, da sociedade pouco compreensiva de 1987 e de seu ressentimento - que alguém que passa AIDS para outra pessoa é um assassino. Que esta pessoa merece ir para cadeia por condenar outro sujeito a ter seu mesmo fim. June tem quatorze anos e já tem de segurar em suas mãos a existência frágil de pessoas que ama; June tem quatorze anos e já se vê confusa com as regras da vida, com os porque sim excessivos e os por quê não em falta; June tem quatorze anos e já não sabe como pode viver o resto da sua vida sem Finn - seu padrinho, seu tio, sua própria deficiência imunológica adquirida; June tem quatorze anos e ainda não sabe quem é, mas já se vê pensando que a AIDS é a pior inimiga que ela poderia ter.
“Meu coração está quebrado e amolecido, e sou comum de novo. Não tenho amigos na cidade. Nem mesmo um. Eu costumava pensar que talvez quisesse ser falcoeira e agora tenho certeza disso, porque preciso descobrir o segredo. Preciso descobrir como fazer as coisas sempre voltarem para mim, em vez de sempre irem embora voando.”
É compreensível. Vocês podem entender o ponto de vista dela: como é que algo tão ruim que trará a morte pode fazer alguma coisa boa? Para ela, isso é impossível.
E é aí que a desconstrução entra. E são desconstruçÕES. Porque, apesar de seus poucos anos de vida e muitos ditames da sociedade, June começa a perceber que nada é tão preto no branco ou factual, cheio de verdades absolutas, para ser impossível. Não há amores impossíveis, por mais incompreensíveis e inacessíveis que possam parecer para nós. Não há sonhos inalcançáveis e metas impraticáveis. Não há só coisas ruins e nem só coisas boas. Há, na verdade, situações que são desconhecidas, que transcendem nossa depreensão. E há, acima de tudo, desconstruções que precisamos fazer.
Ao terminar este livro, nós podemos ver que a AIDS é fundamental para o enredo, mas não é o centro da história. Não. DALQEEC fala sobre o amor, sobre ser e sobre redescobrir verdades já escritas. Nas páginas dele nós podemos ver personagens que querem ACONTECER, sem a coação do impossível em seus planos. Podemos ver que a deficiência imunológica adquirida não é a AIDS, e sim a chance que damos a todos os males, descrenças e intempéries de nos infectar, de não deixarmos nós mesmos crescer, de deixarmos de acreditar, de nos deixarmos correr com as águas do tempo sem nadar no sentido contrário.
Diga Aos Lobos Que Eu Estou Em Casa pisa diretamente no que achamos mais concreto e destrói os conceitos que pensamos ser os mais verdadeiros possíveis. É um livro profundo, pesado e intenso, lindo de sua capa à quebras de capítulo e transições de tempo. É uma jóia rara que não se vê nem lê todo dia. É um livro que você lê sabendo que é um risco, pois ao terminá-lo, você não será mais o mesmo. É como avisar os lobos selvagens sobre sua localização exata - é como dizer a eles que você está em casa, e esperar o estrago ser feito.
E sim, é um estrago e tanto.
Mas é um estrago que vale a pena. É um estrago que abre nossa visão, muda nossa ótica.
É um estrago necessário.
Porque, como na música, a vida é trem-bala, parceiro, e a gente é só passageiro prestes a partir.