PorEssasPáginas 18/12/2013
A Cuca Recomenda Deuses Esquecidos - Por Essas Páginas
Adquiri esse livro há uns meses já, na Fantasticon desse ano. Conhecia o Eduardo Kasse pelos seus posts em seu blog e no blog da Editora Draco, aliás, recomendadíssimos para amantes da leitura, aspirantes a escritores e todos os públicos: são posts que vão desde escrita até crescimento pessoal, ricos em valores. Além disso, também já tinha lido o conto Sobre guerras e deuses, também parte do universo da série Tempos de Sangue, resenhado aqui no blog. Mas um conto é pouco para se conhecer um escritor, então fui atrás de ler Deuses Esquecidos, segundo volume da série. ‘Bora lá saber o que achei dessa fantasia histórica?
Primeiro vocês podem me perguntar: mas por que você leu o segundo volume antes do primeiro? Bem, ele estava sendo lançado lá na Fantasticon e em oferta. Aí eu aproveitei que o Eduardo estava por lá no evento (e essa é a delícia de comprar e ler livros de autores brasileiros, não? A interação com o próprio autor) e perguntei a ele se poderia ler o segundo livro sem ler o primeiro antes. Ele disse que sim, que eram livros independentes, mesmo que interligados e residentes no mesmo universo. E realmente senti isso ao ler o livro: não é problema algum lê-lo separadamente da série, ele é único dentro de si mesmo. Só por causa disso já gostei logo de cara da obra. Quem acompanha minhas resenhas por aqui sabe que tenho um probleminha com séries. Vejam bem, não é que eu não goste delas… São só dois probleminhas muito simples: o primeiro é que eu detesto ser enganada. Detesto quando leio um livro e só lá no final me dou conta que é uma série; detesto quando a editora omite esse fato. E aqui vocês podem perceber muito bem (e isso é nas capas dos dois livros da série) que a Editora Draco foi super honesta e logo ali já diz “Série Tempos de Sangue”. Segundo ponto: eu não gosto de ficar presa em uma série por apelação de enredo/final, gosto de acompanhar uma série porque ela tem qualidade, algo que esse livro tem e de sobra, portanto, sim, agora eu quero ler o primeiro livro da série! E o próximo também!
Deuses Esquecidos narra a história de um camponês humilde e rústico chamado Alessio que, por uma infelicidade do destino, é mordido e transformado em um vampiro. Alessio simplesmente estava na hora e lugar errados e, por isso, sua vida foi amaldiçoada. Para piorar, ele é um homem simples, com esposa e filho, temente a Deus, em uma época que a Igreja Católica influenciava intensamente a vida das pessoas, em plena Idade Média. Por isso, ele fica terrivelmente perturbado quando descobre, gradualmente, o “monstro” no qual se transformou. É então que começa sua longa jornada para entender essa nova vida.
Apesar de narrar a história de Alessio e tê-la como trama principal, o livro não foca exclusivamente nele. Em suas partes, a narração é realizada em primeira pessoa, porém as demais narrativas são em terceira pessoa, mostrando outros pontos de vista. O autor focou bastante na questão da Igreja, não de maneira sufocante, mas sim inteligente, uma vez que Alessio trabalhava perto de um mosteiro e era ajudado pelos monges de lá. Estes descobrem, violentamente, a criatura na qual se transformou o pobre homem e começam uma caçada a ele em nome da fé. Aqui não tomei como se eles fossem ruins ou vilões, mas sim personagens cegos pela fé, com pouco conhecimento e, acima de tudo, que fizeram péssimas escolhas. O livro bate muito nessa tecla, das nossas escolhas e como elas podem ser catastróficas.
Outra discussão que achei interessante foi a respeito de como as coisas se tornam pequenas vistas sob a ótica da eternidade. Na época em que o livro se passa, as pessoas acreditam em um Deus único, a quem devem temer, mas será que esse Deus resistirá à ação do tempo? O próprio título do livro remete a essa discussão. E os Deuses Esquecidos, os gregos, romanos e tantos outros, que não sobreviveram ao passar dos anos? Seriam eles um exemplo do que acontecerá também a esse Deus? Aqui acredito que não se fala apenas de Deus, mas sim das religiões como um todo. Hoje mesmo percebemos que a Igreja Católica perdeu muita da força e influência que possuía. Se vivêssemos eternamente como Alessio, será que nossas crenças seriam reduzidas a pó pelo tempo?
“O verdadeiro milagre aconteceria quando os pecados fossem expiados pelo sangue, pelo toque agudo da lâmina.” Página 97.
Diferente do conto que li do Eduardo, a narrativa desse livro é simples e por vezes monossilábica, de acordo com os personagens simples que protagonizam a história. Entendo que essa narrativa era necessária, mas algumas vezes ela me distanciou um pouco dos personagens, e eu não senti a empatia que talvez sentiria se houvesse um prolongamento de algumas frases e parágrafos. Gosto de praticidade, mas também gosto de um desenvolvimento dos sentimentos e pensamentos dos personagens; não que isso aqui não seja feito, mas é realizado de forma rápida e rústica. Adequada ao personagem? Sim. Mas eu, como leitora, queria saber mais, sentir mais. Gosto pessoal.
Nada disso, porém, impede que essa seja uma leitura envolvente. Logo nas primeiras páginas o leitor já se vê enredado na história de Alessio e dos demais personagens. No entanto, eu me senti mais atraída ainda pela história de seu filho, Lino. Gostei muito da construção dele, das suas dúvidas, aspirações; seus sentimentos foram muito bem explorados e a condução de sua trama foi incrível. Outro personagem memorável foi Ugo, o Carnifice, que é daqueles personagens que amamos odiar: muitíssimo bem escrito, um personagem complexo e cheio de camadas, que adicionou e muito à trama. Quanto ao frei Lucio, achei que fosse gostar mais dele se, como eu disse acima, algumas vezes a narração fosse um pouco mais prolongada. As maiores interações dele foram com Alessio, que simples como era, não se preocupava muito em discorrer sobre o frei. Simpatizei mais com o personagem quando ele tomou outro rumo na história; ele era importante e o escape cômico de um livro denso, mas suas partes mais engraçadas foram longe do personagem principal.
Ah, falando ainda de personagens, como não falar da Raposa, uma vampira que Alessio conheceu em suas andanças? Uma personagem feminina magnífica, densa, forte, complexa e cheia de encanto. Eu fico muito feliz quando encontro uma personagem feminina tão interessante nas mãos de um escritor. É mais fácil encontrar uma personagem assim nas linhas de uma escritora, e por isso é tão bacana ver uma boa personagem escrita por um homem.
Gostei muito do final; foi cheio de energia e trouxe algumas reflexões bem interessantes. Lembrando que esse é um livro com vampiros de verdade, o que me deixou muito satisfeita: eles torram no sol, alimentam-se de sangue, são fortes e ágeis. Alessio vai desenvolvendo seus poderes gradualmente, ou seja, ele não é mordido e vira o vampiro do pedaço, não mesmo, tudo é muito gradual e bem construído nesse sentido. Difícil eu gostar de um livro de vampiros, peguei birra dessas criaturas, mas gostei desse.
Durante todo o livro percebe-se o cuidado imenso que o autor teve em ser fiel ao período histórico escolhido como pano de fundo da trama. Aliás, esse cuidado é uma característica do Eduardo Kasse. Ele é muito fiel, historicamente, em seus livros. Faz um trabalho de pesquisa incrível e apurado. Escrever, afinal, não é apenas amontoar palavras e situações, mas sim construir um universo, o que envolve, certamente, muita e muita pesquisa.
O cuidado editorial foi o de sempre da Editora Draco: uma capa simples, mas bonita, que tem tudo a ver com o livro. Páginas amareladas e de qualidade, com um bom tamanho de fonte. É um livro muito confortável de ler. Há algumas ilustrações muito bacanas no começo e no final do livro. Apenas achei que o livro poderia ser ainda um pouco mais revisado e apurado; percebe-se sim uma boa revisão, não encontrei problemas que atrapalhassem a leitura, mas algumas coisas poderiam ser mais lapidadas pelo revisor.
Deuses Esquecidos é um ótimo livro, indicado principalmente para quem curte fantasia, em especial, a histórica. Com uma escrita madura e personagens bem construídos, Eduardo Kasse afirma-se nesse que é seu segundo romance. Não é um livro que empolga ou tira o fôlego, mas certamente é um livro que envolve o leitor e o prende da primeira à última página.
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