Paulo 26/04/2020
O ato de escrever não é algo extremamente complicado. Escrevemos coisas todos os dias: uma receita de bolo, um relatório no escritório, um formulário de emprego. A escrita de ficção é uma tarefa que exige mais criatividade. Criar personagens, construir um mundo, articular uma narrativa. Mas, o elemento fundamental em uma obra de ficção ainda continua sendo o que você escreve no papel. Se o autor consegue ser claro, conciso, instigante. Alguns autores conseguem criar histórias memoráveis, mas com uma escrita que pode ser dura e lenta. Por exemplo: eu adoro os livros do Haruki Murakami, mas sei que ler uma obra dele exige foco total e absoluto, e que suas páginas vão levar mais tempo para serem transpostas. Guy Gavriel Kay consegue escrever linhas e parágrafos tão suaves e macios que a leitura flui muito bem (crédito também para a ótima tradução que manteve a essência da escrita do Kay). Não apenas isso como também os encadeamentos de frases parecem belos e corretos. Belos no sentido de que as frases parecem ritmadas e musicadas; corretos significando o simples fatos de que as palavras deveriam estar naquela ordem, naquela sequência. Não há outra ordem para elas.
Antes de começar a escrever fantasia, Guy Gavriel Kay escrevia poesias. Ele é um mestre na arte da composição de versos líricos e sua habilidade foi o que levou Christopher Tolkien a procurá-lo para ajudar a organizar os textos que viriam a formar o Silmarillion. As frases escritas pelo autor soam diferentes, há uma pegada emocional por trás de cada parágrafo. O autor sabe também criar tensão na medida certa. Tem alguns momentos em que o leitor vai se pegar emotivo por conta de um assunto abordado pelos personagens ou alguma cena mais forte. O estilo de prosa do Kay vai ser associado por alguns à escrita do autor de O Nome do Vento, Patrick Rothfuss. Entretanto, Kay é mais um jogador do que um apreciador. Rothfuss prefere mostrar o cotidiano e se focar nas mínimas coisas; Kay prefere posicionar suas peças e fazer as engrenagens girarem.
A história tem como protagonistas principais Devin e Dianora. Devin é um cantor que faz parte da trupe itinerante de Menico de Ferraut. Saiu de casa mais moço porque não conseguia se ver trabalhando no campo. Ao lado de Menico conseguiu um pouco de fama e fortuna a ponto de se tornar sócio do dono da trupe em pouco tempo. No momento em que a história começa, chegamos com Devin em Astibar, uma das nove províncias da Palma. O Duque Sandre D'Astibar, um dos nobres que mais resistiram ao domínio de Alberico de Barbadior, finalmente decidiu cruzar os portais de Morian, uma expressão que significa sua morte. Mas, antes de morrer, Sandre exigiu de Alberico ser enterrado com toda a pompa e tradição dos rituais antigos. Isso significa passar por todo o ritual que simboliza a Tríade, os deuses protetores da Palma (Adaon, Eanna e Morian). Os filhos de Sandre estão escolhendo que músicos cantarão o Lamento de Adaon durante o funeral e, obviamente que Devin consegue obter esse privilégio, significando a entrada de muito dinheiro para a trupe de Menico. Mas, após a apresentação, coisas estranhas começam a acontecer. Principalmente com a estranha Catriana, uma bela mulher ruiva que vem tirado o sono de Devin.
Em Chiara conhecemos nossa outra protagonista, Dianora. A melhor definição para ela é sobrevivente. Tendo sido uma das sobreviventes das guerras no Deisa, Dianora tem um profundo ressentimento por Brandin de Ygrath, aquele responsável por desaparecer com a memória de Tigana. O objetivo na vida de Dianora é matar o tirano. Para isso ela coloca em prática um audacioso plano para se aproximar dele. Após uma longa jornada, Dianora se torna uma das principais concubinas da saishan de Brandin. Possuidora de um carisma terrível e conhecendo as artimanhas por trás das sedas da saishan, Dianora se torna uma força da natureza. Mas, ela percebe que os anos se passaram e ao invés de matar Brandin, agora ela simplesmente habita sua cama. Um dia, Brandin vê uma riselka (um ser mítico da Palma) e confidencia esse estranho encontro a Dianora. Apesar de Brandin não conhecer o significado do encontro com este ser, Dianora sabe... E tudo irá mudar.
É preciso situar também os leitores no cenário do livro. A Palma é uma península formada por nove províncias: Chiara, Senzio, Asoli, Astibar, Corte, Certando, Tregea, Baixa Corte e Ferraut. Mas, antigamente havia Tigana. Há vinte anos atrás a Palma foi vítima do ataque de Alberico, a mando do imperador de Barbadior e de Brandin que veio colonizar a Palma em nome de Ygrath. Os dois possuíam incríveis poderes que subjugaram rapidamente a península. Mas, Brandin teve mais dificuldades quando colocou seu filho Stevan a mando de um ataque à província de Tigana. Os tiganeses resistiram bravamente e Stevan acabou morrendo durante um combate às margens do rio Deisa. Brandin, enfurecido, parte em uma campanha de massacre à Tigana e após sair vitorioso usa seus poderes mágicos para apagar o nome de Tigana da mente de todas as outras províncias da Palma. Somente os tiganeses se lembrariam do nome de sua nação; quando fossem falar com outras pessoas, o nome Tigana seria ouvido como um ruído incompreensível pelos demais. Pessoas que nascessem depois também não reconheceriam mais o nome de Tigana. Tigana se tornou Baixa Corte, uma província desprezada por Brandin com todas as forças.
A temática da memória nacional é um dos temas mais destacados na narrativa. Estamos falando da importância de ter nascido em um lugar. De o quanto temos a necessidade de pertencermos, de termos uma casa. O ato de apagar um lugar da memória coletiva é a violência final contra um coletivo. A dor que isso provoca no íntimo dos envolvidos em resgatar Tigana é absoluta. Tem um momento da narrativa em que Devin fica sabendo dos detalhes de sua missão que chega a doer o coração. A maneira como Alessan coloca toda a situação, a angústia, a tristeza, é de emocionar o leitor. Mencionar a palavra Tigana é um grito de fúria e de liberdade; só que ninguém consegue ouvir além daqueles que entendem o que acontece. Talvez isso não seja tão compreensível para nós, brasileiros, já que temos uma relação diferente com nosso país. Nosso nacionalismo é esquisito e o ufanismo aparece apenas em raros momentos de nossa história. Por essa razão talvez uma das problemáticas para o livro ecoar com os leitores brasileiros seja justamente a falta de compreensão sobre o que realmente significava o apagamento da memória.
Lendo o posfácio escrito por Kay para a nossa edição brasileira (um mimo entre muitos problemas na edição) é ele colocar para nós uma das chaves para a sua narrativa: homens bons realizando coisas ruins em prol de um ideal. E realmente é isso no fim das contas. Mesmo Devin, Baerd e Alessan desejando algo bom para a Palma, eles são obrigados a realizar coisas deploráveis ao longo da narrativa. Alessan se vê na necessidade de usar uma pessoa como ferramenta para poder avançar seus planos; coloca toda uma província em perigo porque necessita estabelecer um campo de batalha; se vê obrigado a engolir seus ideais em um determinado momento. Alcançar o objetivo final na história vai exigir muito do caráter dos personagens. É aí que a gente começa a separar meninos de lobos. Quando chegarmos aos momentos finais de Tigana, veremos que os personagens serão completamente diferentes.
Uma das virtudes de Kay é saber trabalhar todos os personagens de forma bem igualitária. A gente pode reclamar de que um personagem ou outro ficou menos tridimensional e simplificado demais, mas todos recebem seu tempo na narrativa. E isso porque estamos falando de um livro único (a Saída de Emergência dividiu um livro que era de um volume só). A habilidade de Kay de compor sua narrativa lhe dá tempo de construir o mundo, desenvolver os personagens e aprofundar a história. Isso é mais do que vemos em muitos outros livros. Em um espaço de aproximadamente 600 páginas, Kay faz mais do que trilogias com mais de 800 em cada volume. Alberico e Brandin são muito mais do que simples antagonistas. Por exemplo, vemos que Alberico é um homem que apostou tudo em uma campanha militar com vistas a reforçar seu poder e destronar seu imperador. Mas, ele vai percebendo que tomou uma decisão errada ao vir para a Palma. Conhecemos seu caráter cauteloso, mais voltado para coisas práticas do que ideais. Já Brandin é o inverso. Brandin se mantém na Palma por conta de sua vingança contra os tiganeses. Mas, Brandin é um homem que vive de suas emoções, que, por vezes, são intempestivas. O caráter do imperador de Ygrath acaba tendo uma boa química com a inflamada Dianora.
Se eu posso tecer críticas à Tigana está no fato de que não se trata um livro com muitas cenas de ação. Kay é mais um planejador do que alguém que vai te colocar no meio do conflito. Temos dois momentos um pouco mais climáticos na narrativa: uma no final da terceira parte e outra realmente no final da narrativa. Outra coisa que me incomodou um pouco foi que em alguns trechos que aparecem sobre o ponto de vista de Alberico são mais contados do que aparecem de verdade. Eu gostaria de ter visto alguns acontecimentos se desenrolando e como Alberico foi sendo levado ao limite por Alessan e suas intrigas feitas nas sombras. Teria sido mais recompensador. Mas, enfim, talvez isso incomode aos leitores que esperam algo mais desenfreado. Isso não é o estilo de Kay. Ele prefere um ritmo mais constante na narrativa.
Daria para falar de Tigana por parágrafos e parágrafos a fio. Mas, fica o meu convite para os leitores para darem uma oportunidade para este material. Se vocês não puderem ler em inglês, adquiram o resto do estoque de Tigana que está sendo vendido sempre a preços irrisórios na Amazon. A qualidade do livro fala por si mesma. Kay é um mestre na prosa poética. Além disso, ele consegue tornar aquilo que nos é familiar em algo diferente do que existe por aí. Alguns vão imaginar que a ideia de Tigana é copiada de um cenário renascentista dos condottieri lutando entre si pelo predomínio na península Itálica. Nada poderia estar mais errado. É como aquela brincadeira da série de TV do Chaves: parece península Itálica, tem sabor de península Itálica, mas não é a península Itálica. É a península da Palma, com todos os seus problemas e dilemas.
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