Psychobooks 21/07/2014
Resenha Dupla
Mari: Eu adoro ler um drama bem construído, daqueles que o autor não tem pressa para desenvolver seus personagens e embasar suas atitudes, esse é um dos principais motivos de eu gostar tanto dos livros da Jodi Picoult.
Alba: Eu não sei porque (fiquei com uma vontade de escrever um "cargas d'àgua" aqui, mas achei que ficava muito gíria de velha!), mas nunca, NUNCA, tinha lido nada da Picoult. E olha que não foi por falta da Mari falar que eu PRECISAVA ler algum livro dela. Quando a Verus anunciou a publicação de "Um Mundo à parte" a Mari me intimou a fazer a leitura dupla com ela por dois motivos:
1 - Livro da Picoult
2- O protagonista é autista (pra quem não sabe, tenho um filho autista que acabou de completar 18 anos, mesma idade de Jacob no livro!)
3- Porque a Mari me ama! (Tá que falei que eram só 2 motivos, mas esse terceiro merece ser citado!)
- Enredo
Mari: Um Mundo à Parte vai contar a hitória de Jacob Hunt, um garoto de dezoito anos que foi diagnosticado com Síndrome de Asperger quando ainda era criança. A fixação mais recente do garoto é a análise forense, obcecado por todas as minúcias científicas, ele sabe todas as etapas de análise da cena do crime, bem como quais os exames laboratoriais o ajudariam a descobrir impressões digitais, vestígios de sangue, etc.
Jess é a professora de habilidades sociais de Jacob, ele a ama na mesma medida que odeia as tarefas que ela passa para ele cumprir. Por incentivo dela, Jacob foi a um baile da sua escola e aos poucos, o garoto vai conseguindo interagir um pouco com outras pessoas, sempre à sua maneira.
Mari: Certa noite, Jacob volta para casa muito perturbado e tem um surto importante como há muito tempo não acontecia, sua mãe consegue acalmá-lo. Alguns dias depois, eles recebem a notícia de que Jess está desaparecida e é iniciada uma investigação para saber seu paradeiro.
A vida da família de Jacob, que já não era fácil, muda completamente da noite para o dia, eles passam a ser o centro das atenções da cidade e vão lutar com todas as forças para conseguir manter os avanços sociais que Jacob conseguiu atingir depois de tantos anos de tratamento.
Alba: Vocês leram essa premissa? LERAM? Então... Ela só já bastaria pra leitura, mas sentem que ainda tem muito mais para ser falado.
- Desenvolvimento do Enredo e narrativa
Mari: A narrativa é feita sob o ponto de vista de diversos personagens, as fontes mudam de acordo com o narrador, mas isso não seria necessário, pois a autora consegue diferenciar muito bem a voz de cada personagem.
Alba: Essa ferramenta usada pela autora funcionou superbem na minha opinião. A história é muito intimista para ser tratada em terceira pessoa. É necessário que fiquemos o tempo tendo inseridos na mente dos protagonistas - sim, todos são protagonistas - para entender as motivações de cada um e para podermos enxergar as similaridades em cada fronte. Como cada ação de um personagem vai ter consequências mais à frente, quando passamos para a visão do outro.
Mari: Outro ponto que gosto muito nos livros da Jodi é que ela não fica presa apenas ao plot principal, efeitos colaterais são sempre apresentados e desenvolvidos. Como consequência, temos um enredo com temas variados, todos muito bem interligados, o que deixa a trama mais próxima ao real.
Mari: Eu não acho que o foco principal está no mistério da morte de Jess, a causa da morte ficou bem clara no começo do livro e acho que é por isso que algumas pessoas não gostaram muito da leitura. Ao meu ver, o foco está no julgamento, nas peculiaridades e características de uma pessoa com Asperger, a dinâmica familiar e em como a vida das pessoas à volta de Jacob são afetadas.
Alba: Como a Mari disse, a grande questão do livro é como uma pessoa que não é neurotípica é tratada pela justiça e por toda a sociedade. Picoult escolheu abordar o austimo de forma ampla, sem preâmbulos. Como a síndrome afeta a família, a sociedade e como, principalmente, ela afeta a pessoa que leva o estigma do autismo. É a ordem da ação e da reação, mas com um porém gigantesco na equação: Como você avalia um comportamento se a sua reação está ligada à resposta esperada de uma pessoa neurotípica?
Alba: Jacob fará com que todos os personagens do livro revejam exatamente esse conceito. Evitar o olhar não significa culpa, não demonstrar os sentimentos não significa a ausência dos mesmos... E por aí vai.
Alba: Uma coisa muito interessante que também analisei na narrativa da Picoult é como, mesmo quando sabemos o que vai acontecer, a autora consegue nos surpreender com o óbvio. Essa sua fórmula óbvia, mas funcional, tem um segredo, e falaremos sobre ele em:
- Personagens
Mari: É notável a preocupação que a autora tem ao construir seus personagens, ela faz sua pesquisa e consegue dar vida à pessoas que antes viviam apenas em sua cabeça. TODOS são tridimensionais e qualquer um deles poderia ser meu vizinho.
Mari: Theo é o irmão mais novo de Jacob, acompanhar sua história que sempre foi paralela ao irmão mais velho, fez meu coração se quebrar um pouquinho. A autora não esconde os sentimentos do personagem, ele faz tudo para ajudar, tem que agir como se fosse o irmão mais velho, não tem outra opção a não ser seguir as 'peculiaridades' da rotina do irmão, mas tem dias em que fica cansado e tudo o que quer é um pouco de 'normalidade' em sua vida.
A mesma coisa acontece com a mãe de Jacob, ela o ama incondicionalmente, faz o impossível para que a vida de Jacob seja livre de estresse, mesmo que para isso sacrifique sua felicidade e as necessidades do filho mais novo, no entanto, há dias em que ela simplesmente não quer sair da cama.
Alba: Não resisto e também preciso falar de Emma! Que construção! Que personagem!
Ouço muito, muito mesmo, que mães de autistas são "guerreiras", "fortes", "exemplos de vida" e gente, de verdade e sem demagogia: Não é nada disso!
Picoult construiu Emma de forma super-real: Uma mãe que luta por seu filho que por um acaso é autista. Não há divisão na luta de uma mãe pelo seu filho e Picoult mostra isso de forma clara.
Mari: Oliver consegue trazer um pouco de humor à trama, um advogado inexperiente, que está passando por uma situação financeira complicada e se vê no meio de uma disputa judicial complicada demais para seu parco conhecimento.
Alba: E a Mari deixou o mais difícil para que eu falasse: Jacob.
É complicado falar de Jacob sem deixar minha história de vida se misturar com a de Emma. Tendo um filho dentro do espectro autista, foi maravilhoso enxergar o livro pela visão de Jacob e entender que às vezes a resposta está lá, na ponta da língua, mas eles não conseguem externá-las.
Alba: A caracterização de um autista é muito complicada porque o autor pode muito bem cair dentro das armadilhas feitas pela síndrome. Se ela o caracterizou com algumas das idiossíncrasias da síndrome, não pode deixar que o personagem aceite aquilo como natural mais à frente. Por exemplo: Jacob odeia a cor laranja e surta quando a vê. Picoult não pode deixá-lo encarar isso como natural em nenhum momento. Em um livro de 600 páginas.
E é nesse momento que percebemos a boa construação da autora e, como a Mari disse, a ótima carecterização de cada um de seus personagens. Jacob não se contradiz em nenhum momento. Quando supera algum obstáculo é por conta das terapias. Quando regredi em alguns pontos, é por conta do estresse sofrido. Quando entende alguma frase dúbia, é devido à alguma experiência anterior na mesma situação.
Alba: O mais interessante é que Jacob entende tudo o que acontece com ele. Ele sabe onde se enfiou e as consequências que pode sofrer, mas o autismo simplesmente distorce sua resposta à situação.
- Nem tudo é perfeito...
Mari: E eu farei duas observações sobre o que me incomodou:
1- a todo momento eu ficava me perguntando o motivo de ninguém ter perguntado para Jacob de forma direta o que tinha acontecido no dia em que Jess desapareceu, sim eu entendo que a mãe dele tinha medo da resposta, ainda assim, acho que alguém poderia ter feito a pergunta.
2- o final foi um pouco corrido e aberto, acho que mais um capítulo para fechar o livro teria sido perfeito.
Alba: 3- A capa. Por que uma criança tão pequena na capa? Jacob já tem 18 anos!
- Concluindo
Mari: Um Mundo à Parte é um livro sensível, se você chora com frequência quando lê uma história tocante, pode preparar seus lencinhos. Não ache que esse é um livro de mistério policial, ele é focado no drama. O desenvolvimento dos personagens e do enredo foram espetaculares, por isso, mesmo com as duas observações que fiz acima, eu o classifico com 5 estrelas e os olhos cheios d'água.
Alba: Perfeito. Essa é a definição que me vem à mente. Não é uma leitura fácil, apesar da ótima fluência. Precisei parar em inúmeros momentos do enredo para que pudesse respirar fundo e aí sim - parar de chorar - voltar à leitura. É um livro sobre pessoas, e Picoult mostra que conhece e constrói personalidades como ninguém.
Super-recomendo.
"(...) Depois de anos imaginando que eu sou um alienígena neste mundo, com sentidos mais aguçados que os das pessoas normais, com padrões de fala que não fazem sentido para as pessoas normais e comportamentos que parecem estranhos nesse planeta, mas que, em meu planeta natal, sem ser perfeitamente aceitáveis, isso de fato se tornou verdade. A verdade é uma mentira e mentiras são a verdade. (...)"
Página 525
"... agora o som já está transbordando por todos os meus poros e, mesmo quando fecho os lábios com força, meu corpo está gritando. (...) contusões são causadas por vasos sanguíneos que se rompem como resultado do golpe - e bato a cabeça contra elas - contusão cerebral acompanhada de hematoma subdural no lobo frontal está associada a mortalidade - e de novo - cada glóbulo vermelho é composto de um terço de hemoglobina - e então, como eu previa, minha pele não pode conter o que está acontecendo dentro de mim e se rompe, e o sangue corre pelo meu rosto para os meus olhos e boca."
Página 245
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