Gilberto 15/02/2010
Ciúme (parênteses da vida cotidiana) – O vício que quis destruir a soberba*
* Texto escrito para disciplina do Curso de Mestrado em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, no ano de 2005.
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Prosseguindo nosso “Seminário Internacional” acerca da coleção “Plenos Pecados”, da Editora Objetiva, que teve seu início na semana que antecedeu com os livros de Luiz Fernando Veríssimo e de Zuenir Ventura, respectivamente, e que terminará no dia 29 deste mês com o livro sobre a preguiça de João Gilberto Noll (diga-se de passagem escreveu o livro nesta ilha maravilhosa), coube-me apresentar para vocês o livro de Tomás Eloy Martínez, sobre a Soberba.
A minha tarefa não é das mais fáceis pois duas grandes personalidades estarão também desenvolvendo este tema. (Não quero que me compreendam equivocadamente, mas vejam só: divido a responsabilidade da leitura com um escritor profissional, o Maicon e com uma brilhante professora de criação de textos, a Regina. Pensando melhor, eu poderia estar numa situação muito pior: de repente teria que “repartir” o tema com a expertise do contador de histórias e também escritor, o Celso, com o didatismo e precisão da Iara, com a profunda percepção – do íntimo das pessoas – da Cida e do Pedro, com a visão jornalística do Marcelo e da Jade, com a voracidade de leitura da Martha, com o criticismo do Raúl, imaginem! Mas que pior que nada! A qualidade destes leitores, e de todos vocês, só serviram para me encorajar a aprofundar ainda mais esta tentativa de ensaio. Espero que tenha conseguido!)
Muito bem, aproveito o ensejo e principalmente por que ainda não adentrei em minha análise para confirmar que não preocupei-me com números de caracteres e muito menos com o tempo da fala (e já aviso de antemão que nem adianta me passarem bilhetinhos avisando o encerramento de minha explanação. O máximo que vocês podem fazer é cortar o som do microfone. Ah, não tem microfone, então peço a gentileza de vocês me ouvirem o tempo que for necessário). Afinal, o tema Soberba e o livro de Tomás Eloy Martínez suscitam uma infinidade de situações possíveis de serem trabalhadas (portanto, chega de lero-lero e vamos ao assunto).
O livro, quase impecável em sua editoração (afinal os primeiros 15 mil exemplares foram distribuídos sem o último parágrafo, sendo que destes 06 mil acabaram retirados do mercado e outros 09 mil circulam entre leitores que pagaram a “ínfima” quantia de R$ 27,00 pelo volume. A editora alegou vacilo do tradutor, Sérgio Molina, corrigido numa segunda edição de 10 mil exemplares. Agora, pasmem vocês, paguei R$ 0,90 pelo último parágrafo, pois tive que contribuir com a Objetiva com R$27,90 e só ao final da leitura pude observar uma falha gráfica, de impressão, que me engoliu o final das duas primeiras linhas do último parágrafo. E para piorar, no final de semana pude verificar que o livro está à venda no site da editora por nada surpresos R$19,90, quase 30% mais barato do que paguei), portanto, realmente quase impecável, possui 277 páginas de muito romance, história, intrigas, ciúmes, jornalismo e soberba.
O narrador trabalha em dois tempos intercalados até o oitavo capítulo (do total de 10 mais o último), sendo que neste inicia-se a junção dessas vozes. Tudo isto para contar a história de Camargo, um jornalista de 63 anos, poderoso e influente, diretor do Diário de Buenos Aires. O romance começa com Camargo espiando através de um telescópio uma mulher que se desnuda, a mesma que há três anos antes o protagonista encontra na redação de seu Diário (mas que são as mesmas mulheres o leitor não vai saber, ainda, no início da obra). Ela, Reina Remis, uma redatora de 31 anos. No transcorrer do romance ocorre o relacionamento amoroso, Camargo demonstra sempre a sua arrogância, soberba e ciúme e então a ruptura do relacionamento. Daí adiante todos os acontecimentos e mesmo as características das personagens lembram o caso do jornalista e diretor do jornal O Estado de São Paulo, Pimenta Neves, que aos 63 anos, apaixonou-se por uma jornalista, Sandra Gomide, e, abandonado por ela acaba matando-a com dois tiros em agosto de 2000 (É curioso informar: Martinez conheceu Pimenta Neves nos Estados Unidos e que este chegou a ligar para o autor poucos dias antes de cometer o crime)
Escrever sobre a Soberba, ou melhor, sobre os pecados capitais não foi pioneirismo da Editora Objetiva. Tal tema na literatura não é novo e, inclusive, também foram publicados por volta, ou no decorrer, da virada de século. O escritor Bernardo Taveira Júnior, gaúcho que viveu de 1836 a 1892, escreveu um drama sobre A Soberba; em 1890 foi publicado o drama póstumo de João Pedro da Cunha Vale, A Soberba, o escritor um baiano que viveu de 1832 a 1869 e cujas obras A Luxúria e A Avareza também foram publicadas; também o escritor pernambucano Carneiro Vilela, que viveu de 1846 a 1913, publicou sua peça de teatro intitulada Soberba.
Esclarecido este ponto podemos nos perder pelos caminhos do pecado. Segundo o Catecismo da Igreja Católica “o pecado é uma falta contra a razão, a verdade, a consciência reta; é uma falta ao amor verdadeiro, para com Deus e para com o próximo, por causa de um apego perverso a certos bens.” Os pecados capitais (Soberba, Avareza, Luxúria, Inveja, Gula, Ira e Preguiça) foram distinguidos por S. João Cassiano e S. Gregório Magno e são chamados de capitais porque geram outros pecados. (Não posso deixar de escapar o momento para esclarecer que S. Gregório Magno, o grande, nasceu em Roma, foi papa de 590 a 604. Durante seu papado assegurou ao Império Bizantino o reconhecimento da sua soberania e lançou uma série de programas de caridade para alimentar uma grande porção da população faminta, em Roma e em toda a Itália. Ele e o papa Leão I foram os únicos a serem honrados com o nome “O Magno” – grande. Por que abri mais este parênteses neste momento? Pela simples razão de que magistralmente e, até mesmo sarcasticamente, este é o nome que Martinez batiza Camargo: Gregório Magno Pontífice Camargo)
Muito bem, retorno à soberba, que também é chamada de orgulho, e consiste numa estima excessiva de si mesmo. A soberba produz outros vícios e pecados, tais como: a ambição, a presunção, a vã glória, a hipocrisia, a obstinação e o desprezo.
Segundo Michaelis soberba é o antônimo da humildade é “altivez, arrogância, orgulho, presunção” .
Adjetivos que Camargo não cansou de usar e abusar:
“Como seria melhor o jornal se ele pudesse escrever sozinho. Como seria melhor o mundo se ele o escrevesse.”
“... o mundo deve continuar girando em volta do que você pensa. E também do que vê, Camargo, já que você tudo vê.”
Da Soberba, Camargo construiu o ciúme um vício que teve a ambição de tornar-se pecado capital. Sob meu ponto de vista o ciúme foi o perfeito narrador deste romance. Este narrador, mais do que onisciente, conhecia e construía coisas somente capazes de assim serem pelo ciúme (só quem sofre ou sofreu desse mal pode isso atestar; ou nossos psicólogos aqui presentes). Constatemos com o romance:
“Mas, pensando bem, por que Reina vai cavalgar tão cedo? Uma revoada de hipóteses atormenta-lhe a imaginação. Não estará esperando outro amante, alguém com quem só se comunica por telefone? Do contrário, o que ela faz nesse lugar até de noite? Pense, Camargo, pense. Por volta de uma da tarde, a mulher deve deixar o cavalo e ir até a casa dos pais, onde almoça. Só então volta com o pai, monta outro animal até as seis horas e, depois de uma segunda passada por Adrogué, talvez para brincar com os sobrinhos – tem dois –, regressa a Buenos Aires. Antes ela usava um dos carros do jornal. Agora pede ao pai que a leve na velha camionete. Restam, então cinco horas em branco: das oito da manhã até a uma da tarde. Você precisa de mais algum indício Camargo? Agora tem certeza de que ela vai se entregar a outro amante na casa do zelador, se é que o amante não é próprio zelador. Ah, quanta força lhe dá essa revelação para enfrentar o gesto irado e desafiante com que ela o encara.”
Quem a não ser o ciúme seria o autor dessas palavras tão cheias de vida, de morte, de intrigas, de suspeitas de pensamentos que nem Camargo conseguiria pensar? Para o ciúme a linha divisória entre a imaginação, fantasia, crença e certeza é vaga e imprecisa. É no ciúme que as dúvidas se transformam em idéias supervalorizadas ou delirantes (quem sabe a Cida ou o Pedro nos ajudem posteriormente neste campo). O ciúme faz com que a pessoas seja compelida à verificação compulsória de suas dúvidas, abre correspondências, ouve telefonemas, examina bolsos, carteiras, roupas íntimas, etc, todos os gestos exercidos por Camargo.
Seguindo, ainda, a leitura do texto, encontramos um trecho em que o ciúme, ou a soberba, se alguns preferirem pensa por Camargo e confronta o Catecismo Católico:
“As paixões são sempre insensatas e se apoderam dos seres humanos do mesmo modo fatal e inevitável que as doenças. Não se pode culpar ninguém por isso. Mas, quando um redator do Estadão lhe telefonou para perguntar o que você pensava do crime, no mesmo dia em que Pimenta admitira sua culpa, você disse: ‘Fazer justiça com as próprias mãos é algo exclusivo das sociedades primitivas’. Quanto mais você pensa nessa reflexão, mais gosta dela: sugere que a ação do seu amigo foi justa e, ao mesmo tempo, indica que, no momento do crime, a inteligência dele regrediu a um estado quase animal, pré-histórico. Por que castigar um ser humano que deixa de ser ele mesmo e permite que, durante um relâmpago de tempo, os instintos tomem o lugar de seus pensamentos?”
Segundo o catecismo para que um pecado seja considerado mortal requerem-se três condições ao mesmo tempo: “É pecado mortal todo pecado que tem como objeto uma matéria grave, e que é cometido com plena consciência e deliberadamente.” Portanto, Pimenta Neves não pecou, Camargo não pecou e o mais grave: o narrador, o ciúme que queria transformar-se em pecado capital, não pecou. Agiram por instinto, sem plena consciência e conseqüência dos atos. (Parece até a tese de defesa do Pimenta Neves. Bem quem sabe a Cida pode posteriormente nos esclarecer melhor quem é esse tal ciúme! Ou então, fico com Zéraffa que em Romance e Sociedade assim se manifesta: “O modo como se transforma um sentimento de ciúme ter-nos-á sido ensinado sucessivamente por La Fayette, Stendhal e Proust”. )
Paremos por aqui a discussão sobre o ciúme. Eu poderia levar toda a minha explanação discorrendo sobre o assunto, mas pretendo, ainda, pincelar outros tópicos que acredito terem importância. Como, por exemplo, o mito do duplo (que já tive a oportunidade de falar na apresentação de Stevenson sob as palmeiras, de Alberto Manguel).
Em O Vôo da Rainha podemos ver diversos exemplos de duplo Reina Remis com Sandra Gomide, Camargo com Pimenta Neves, Camargo e seu duplo narrador, Simão o duplo de Jesus Cristo, presente nos evangelho gnósticos. E quando a história se une, temporalmente falando Camargo se encontrou com seu duplo narrador, originando a morte de Reina e lembrando as palavras de Nicole Fernandez Bravo: “O encontro com seu próprio duplo simboliza para o enamorado a perda da amada, a solidão que faz desejar a morte.” No caso do romance em questão da morte de Reina pois a soberba deve reinar. (terá sido justo o trocadilho?)
Não pretendo me alongar sobre a discussão do duplo apesar de ser uma questão bem merecida, mas agora percebo que meu tempo está passando mais rápido do que eu imaginava e ainda nem falei do autor do livro (Mas antes solicito licença para mais uma divagação)
Na contra-capa do livro é apresentado um texto que muitos outros críticos, desta coleção, também alardearam: o do pecado original. Vejamos: “A soberba, o sétimo pecado desta série, é o mais prolífico dos vícios capitais. Como um desejo desordenado de glória e superioridade, a soberba também é considerada a forma básica do pecado – foi ela a responsável pela desobediência primeira, a de Adão, que provou do fruto proibido com a ambição de tornar-se Deus” . O ato de comer a maçã pode ser incluído quem sabe em todos os sete pecados capitais, para alguns bastará apenas um pouco de imaginação. Mas, agora querer dizer que Adão foi soberbo, que teve a ambição de se tornar Deus! Isto é uma blasfêmia.
Raciocinem comigo: quem foi responsável pela desobediência primeira de Adão? Segundo o texto acima, a Soberba. (Para quem não lembra a desobediência de Adão foi comer a maçã; e cumpre observar que não foi de nenhuma forma parnasianamente) Mas por que Adão provou da maçã? Porque Eva o instigou. Isto está nas escrituras (leiam gênesis 3, 1-7). E podemos ler também a peça natalina de fins do século XII Mystère d’Adam , preservada num único manuscrito e uma das peças mais antigas em Latim vulgar :
“Adão deve então dirigir-se a Eva, preocupado porque o diabo falou com ela e deve dizer-lhe:
Dizei-me, mulher, o que procurava o malvado Satanás junto a ti? O que queria de ti?
Eva: Falou-me do nosso proveito.
Adão: Não acredites no traidor! Ele é um traidor, sei muito bem disso.
Eva: Como é que sabes disso?
Adão: Por experiência própria!
Eva: Por que deveria isso impedir-me de vê-lo? Também a ti ele levará a pensar de outro modo.
Adão: Isto ele não conseguirá, pois nunca acreditarei numa só de suas palavras! Não deixes mais que ele se aproxime de ti, pois é um sujeito muito malvado. Já quis trair o seu senhor e pôr-se a si mesmo à sua altura. Não quero que um tal patife tenha qualquer coisa a ver contigo.
Eva deve aproximar o seu ouvido da serpente, como se ouvisse o seu conselho; depois deverá pegar a maçã e oferece-la a Adão. Este não deverá querer pega-la a princípio, e Eva deverá dizer-lhe:
Come, Adão, tu não sabes o que é isto! Peguemos este bem que nos é dado.
Adão: É tão bom?
Eva: Logo saberás! Não podes sabe-lo sem experimentar.
Adão: Tenho medo de faze-lo!
Eva: Experimenta!
Adão: Não o farei!
Eva: Que hesitação covarde é essa!
Adão: Então à pegarei.
Eva: Come, pega! Assim reconhecerás o bem e o mal. Eu comerei primeiro.
Adão: E eu depois.
Eva: Naturalmente.
Aqui Eva deverá comer um pedaço da maçã e dizer a Adão:
Experimentei. Deus, que sabor! Nunca comi algo tão doce. Que sabor tem essa maçã!
Adão: Que sabor?
Eva: Um sabor que nunca homem algum experimentou. Agora os meus olhos tornaram-se tão claros, que eu me sinto como Deus todo-poderoso. Tudo o que foi, tudo o que será, tudo o que sei, e sou seu senhor. Come, Adão, não hesites, pega-la-ás em boa hora.
Aqui Adão deverá pegar a maçã da mão de Eva, e dizer:
Crerei no que dizes tu és o meu par.
Eva: Come, não temas.
Aqui Adão deverá comer um pedaço da maçã ...”
Então, Adão foi soberbo? Quem sabe Camargo? Reina Remis? Ou terá sido Eva?
Para encerrar, e antes que meus caracteres se esgotem é preciso falar do autor de tão instigante obra. Tomás Eloy Martinez nasceu em Tucumán, Argentina, em 1934. Em Buenos Aires onde viveu até 1975 foi diretor do noticiário de televisão Telenoche. Morou na Venezuela entre 1975 e 1983, onde fundou El diário de Caracas. Atualmente mora nos Estados Unidos e é diretor do programa de estudos latino-americanos de Rutgers University, em Nova Jersey. Publicou as seguintes obras: Sagrado (1969), La pasión según Trelew (1974), Lugar común la muerte (1979), La novela de Perón (1985), La mano del amo (1991), Santa Evita (1995), Las Memorias del General e El vuelo de la reina. Esta última, e objeto de nossa análise, foi vencedor do prêmio Alfaguara 2002, dotado de U$ 175.000.
Infelizmente não posso me alongar, apesar do assunto requerer. Culpa do tempo, do espaço (quantos + ou – mil caracteres?). Além do mais, é muito engraçado esse tal tempo (talvez seja ele o todo SOBERBO), quando estou a esperar pela minha namorada ele leva uma eternidade, porém para falar sobre a soberba para todos vocês ele se esvai por rápidos quinze minutos (o quê?? Já foram vinte!) Então encerro por aqui as minhas palavras.