Paulo Sousa 23/09/2021
Leitura 22/2021
Limonov [2011]
Orig. Limonov
Emmanuel Carrère (Paris, 1957-)
Alfaguara, Selo TAG 2017, 371p
Trad. André Telles
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?É na Ásia central, continua Eduard, que ele se sente melhor no mundo. Em cidades como Samarcanda ou Barnaul. Velhas cidades esmagadas pelo sol, empoeiradas, vagarosas, violentas. Lá, à sombra das mesquitas, sob as altas muralhas, há mendigos. Cachos inteiros de mendigos. São velhos esquálidos, calejados, desdentados, não raro cegos. Vestem uma túnica e um turbante encardidos, têm à sua frente um pedaço de veludo sobre o qual esperam que lancemos moedinhas e, quando lançamos, não dizem obrigado. Não sabemos o que foram suas vidas, sabemos que terminarão na vala comum. Não têm mais idade nem bens, supondo que um dia os tiveram, mal lhes resta um nome. Soltaram todas as amarras. São destroços. São reis? (pag. 371)
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Até ler este livro, eu nada sabia sobre Edward Veniaminovich Limonov, um ativista do comunismo fascista russo que também foi escritor, poeta e jornalista. Inclusive, até mais ou menos na página 100 achei se tratar de um personagem criado por Carrère, num romance que mistura fatos e ficção, cujo estilo foi classificado como jornalismo literário.
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Ledo engano.
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Isso porque, de fato, Limonov existiu (faleceu em 2020, aos 77 anos) e, conforme contado no livro do escritor francês, uma espécie de biografia jornalística, teve uma vida bem movimentada tanto artística quanto politicamente.
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Limonov nasceu dois anos antes do fim da Segunda Grande Guerra, numa cidade industrial distante três horas de trem de Moscou. Teve uma infância e adolescência parcialmente comuns, não fosse sua iniciação em pequenos crimes - roubo em sua maioria, e o encontro com a poesia, quando iniciou sua vida literária. Saindo da cidade Natal, Limonov esteve de 1966 a 1974 em Moscou onde passou um tempo vivendo da confecção de calças jeans, muitas delas vendidas ao intelectuais e literatos. Nesse tempo, começa sua militância política, levando-o a ser forçado a deixar a União Soviética. Limonov muda-se para Nova Iorque, nos Estados Unidos, onde vive até 1980. Sua estada na América é conturbada, Edward passa dificuldades financeiras, já que não consegue espaço no mundo literário local já que o autor sempre se apresentou como árduo defensor do regime comunista, o que não era bem visto pelas editoras americanas. Nessa época, vive com moradores de rua (no livro, Carrère descreve cruamente as experiências homossexuais entre Limonov e negros em situação de rua, que ele ia encontrando pelas ruas nova-iorquinas).
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Após a frustrante passagem pela nação à qual Limonov se referiu como ?maldita casinha desprovida de espírito ou propósito na periferia da civilização?, se muda para Paris, onde vive até 1991. Na capital parisiense sua sorte muda e logo Edward se torna um ativo frequentador dos círculos literários franceses. Com algum prestígio ganhos pelos livros que conseguira enfim publicar, todos com teor ?underground?, Limonov volta para a Rússia em 1991, quando de fato seu ativismo toma corpo. Apoia vivamente a guerra que assolou a Sérvia, colapsou a então Iugoslávia e participou diretamente numa patrulha de atiradores na Guerra da Bósnia. Todas essas atuações dissidentes acabaram chamando a atenção do governo russo, que o classificou como terrorista. Limonov acabaria preso em 2001, sendo acusado, entre outras coisas, de reunir um exército para invadir o Cazaquistão. Cumpriu pena reduzida de 4 anos, tendo vivenciado a realidade de um campo de trabalhos forçados, até ser solto. Enquanto esteve preso, Limonov escreveu oito livros, entre ensaios e poesia. Ao sair, retoma sua atividade política se filiando ao Partido Bolchevique Nacional, o qual acabaria tendo seu funcionamento proibido pelo governo russo em 2007. Teve frustrada também sua tentativa de criar um novo partido político, sucessor ao NBP, e chamado ?Outra Rússia? (este só oficialmente registrado em 2019) e acabaria se candidatando como opositor do então primeiro colocado nas pesquisas, Vladimir Putin, em 2012?
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Carrère lega um livro tempestuoso, cru, uma narrativa sem preocupações com os altos e baixos de seu ?biografado?. Ao ler, não pude deixar de notar, nas várias passagens da vida de Edward Limonov, certa semelhança com outro ativista político ferrenho, descrito nas páginas de Jorge Castañeda: ?Che Guevara: a vida em vermelho?, livro que li em 2009 e que sugiro vivamente sua leitura. Nele, Castañeda, um jornalista impecável, narra a trajetória de vida de Ernesto Guevara de la Serna, o Che, um homem intransigente, inflexível, nada parecido com o ideário construído em volta de sua imagem, a cuja postura inclemente muitas vezes usou da própria pistola para tirar a vida de companheiros de campanha em julgamentos sumários no meio da mata. Como todos sabemos, Che não se acostumou com os frutos da vitória obtida pelo campanha de Fidel Castro em Playa Girón, na ilha de Cuna onde acabou sendo nomeado ministro. Buscou contribuir em outros confrontos, primeiro na África (onde fugiu acossado pelas tropas governistas do Congo), e depois na Bolívia, a cujas selvas se embrenhou e onde, numa emboscada, acabou sendo morto.
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As duas histórias tem diversas semelhanças entre si, sobretudo no fecho, quando ambos os heróis falham em seus intentos de mudar regimes, de apoiar regimes, de se filiarem e atuarem em guerrilhas e, no final, acabam desaparecendo, ou por emboscada - como foi o destino de Che, ou por abandonar a causa, como Limonov. Assim como Che, que teve uma vida bem agitada, sempre em busca de uma nova luta, Limonov também soube fazer de sua existência um mar de problemas, e daí extrair matéria viva para seus escritos. Ambos tiveram seu momento de brilho; mas, como escrito na citação que separei e que abre este singelo review, perderam todas as amarras, são destroço.
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Apreciará este livro quem tenha prévio e bom conhecimento de política e de história, principalmente da Rússia, sendo este o motivo por eu ter demorado tanto em concluir a leitura. Nada que desabone a obra, é claro.