spoiler visualizaredu.azeredo 23/04/2024
Barata Cascuda e Existencialismo
O constante sentimento de não pertencer a um lugar, no qual se é violentado de modo frequente pelas pessoas que deveriam ser responsáveis pela sua integridade, afinal são estas quem te puseram no mundo, é um local conhecido para aqueles distantes de sua própria sanidade. Quando não se tem apoio para, em um momento sequer, poder se estabilizar diante da perca do seu próprio controle, a perca da humanidade se torna, como Kafka diz, um benefício muito mais que tudo. Isso porque, ao se perder da conexão com seu próprio corpo e o local no qual ele ocupa, não é possível mais transgredir as barreiras emocionais e atrelá-las ao espaço físico. Seja pelos móveis herdados - pertencentes a uma linhagem familiar e a um ciclo sociocultural - estando irreconhecíveis e sendo retirados a força de seu próprio quarto - não pertecentes portanto -, seja pelo afastamento da própria condição de ser vivo ao não reconhecer o outro como um ser que, anteriormente, era tão vivo dentro de sua própria perspectiva; o ato de se auto esmaecer vira uma constante solução para lidar com um ambiente de controle, vigia e cobrança severos.
Perder a consciência para Gregor não se torna uma opção inicialmente, haja vista sua necessidade de sair de sua própria cama para trabalhar, sustentando sua família, e, com isso, utilizar a sua existência como uma função validadora, isto é, com base na aprovação daqueles de quem ele cuida, reciprocamente, ser cuidado tanto quanto. Contudo, isso não parece vir a tona, uma vez que, antes mesmo da perda de sua consciência, a perda de sua silhueta material e física já serve de motivo suficiente para se "pagar o preço do esquecimento simultâneo, rápido e total do seu passado humano". A partir do momento no qual a sua vida perde sua função motora de base estruturante para sua família, a negligência, acompanhada da tentativa de mantê-lo vivo - independente de qualquer intenção positiva ou negativa -, surge aparentemente para afastar o nojo dos seus progenitores para sua figura monstruosa, ao mesmo tempo que alguém, cuja relação horizontal de irmandade se dispõe de maior empatia, tenta substituir essa função basilar perdida recentemente. A tentativa de um outro segurar as pontas de sua integridade de ser-vivo (não mais ser-humano) era de que "não poderia ser tratado como um inimigo, mas diante do qual o mandamento do dever familiar impunha engolir a repugnância e suportar, suportar e nada mais." É por esse motivo no qual Gregor entende que não era somente por consideração a ele próprio a ausência de uma mudança, mas principalmente pela "total falta de esperança e o pensamento de que (sua família) tinha sido atingida por uma desgraça como mais ninguém em todo círculo de parentes e conhecidos"; isto é, sem perspectiva de um futuro em meio ao vazio de esperanças do presente, não há como se ter horizontes de mudança, muito menos expectativas daquilo que esta por vir como motivação para continuar existindo.
Já sem ânimo de permanecer consciente sobre seu passado, assim como de tudo aquilo que o remeteria - principalmente de sua família -, sob a relação de Gregor com a comida, estende-se um holofote interpretativo no qual, justamente por ser dependente de outros para manter suas necessidades fisiológicas, no momento da sua perca de si próprio, se é visto sua autonomia precoce. Ora, se em um período da vida o ser-humano é dependente de quem o põe no mundo, a deficiência de cuidado nesse momento pode voltar posteriormente como um vazio identitario em sua vida adulta, principalmente naquilo que se é mais importante e mais básico da sua própria independência: o ato de comer. Quando se é necessário crescer antes do pressuposto, o desenvolvimento rápido da própria autonomia suscita falhas programáticas, assim como acalenta um medo profundo de crescer naquilo que não se foi preciso, até então, crescer. Ao recordar-se, pois, da sua família com emoção e amor, entende o peso da sua existência como um fardo impossivel de ser carregado por aqueles os quais destina seu afeto. Logo, aceita seu próprio fim, decorrente de uma exaustão escalonada, cuja responsabilidade se monta na sua luta constante pelo instinto mais significativo de um ser-vivo: sobreviver. Sem sequer intervir em sua morte pela própria vontade - sendo a vontade como algo mais profundo e sincero que qualquer sentimento impulsivo ou ato de desesperança efêmero -, é neste ponto no qual a perca da humanidade conclui seu último processo para, assim, terminar a história de alguém que sequer vai se lembrar da própria trajetória.