A terra por onde caminho

A terra por onde caminho Mário Bentes
Mário Bentes




Resenhas - A terra por onde caminho


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Luiz__Guilherme 28/04/2014

Um romance sobre a morte, esse mistério
“A terra por onde caminho” (Schoba, 2012, 192 páginas), livro de estreia do jornalista Mário Bentes, é um romance em forma de contos sobre a morte, esse mistério que inquieta os homens há séculos. Mas também sobre a vida, sobre a solidão e uma reflexão crítica sobre o ser humano. Tudo desfiado de um vasto lugar chamado Sétimo Céu, onde as estrelas nascem e morrem. O lugar predileto da morte, que aqui tem nome e sobrenome: Uriel, o gentil alado sombrio dos olhos cor de abismo.

“Não sei quando passei a amar as estrelas. Não sei, tão pouco, porque as amo e porque quero estar aqui, onde elas nascem”, diz Uriel na abertura do romance. É de lá que, em quarenta capítulos curtos, narrados em primeira pessoa, que o anjo da morte conta ao leitor, em sussurros intimistas, sobre a sua dura missão de ceifar vidas na terra, sejam elas de um passado remoto ou de um período bem próximo. “Eu nada mais sou que o caminho entre os seres vivos e o retorno às origens, ao pó da terra e ao inefável e indescritível pós-vida”, diz no capítulo “Um”.

Do alto do seu berço, no Sétimo Céu, a morte observa os homens permeados de afazeres, de lembranças, de interrogações, de sonhos e de vícios. Todos eles debaixo da maldição do pecado original – maldição que obriga Uriel a ter de cumprir a sua missão fúnebre, que ele procura atenuar ao cantar uma doce melodia quando precisa levar alguém de bom coração, fazendo com que a passagem destas pessoas seja menos dolorosa possível. Por outro lado, aos ímpios resta o pavor perante os seus olhos vazios e as suas asas negras.

Diante de tantos questionamentos a respeito da morte ao longo do livro, é inevitável não ligar o constante desconforto de Uriel ante a morte dos seres humanos com uma passagem da Bíblia, no livro do profeta Ezequiel (18:32 – Nova Versão Internacional), que diz: “pois não me agrada a morte de ninguém; palavra do Soberano Senhor. Arrependam-se e vivam!”. O próprio Uriel descansa as suas dúvidas nas mãos de Deus antes de partir para mais uma missão no capítulo “Dezoito”: “(…) seus desígnios pelo homem são desconhecidos, e cujo significado jamais será compreendido nem por toda a sabedoria humana, nem por suas ciências ocultas, nem por magia ou feitiçaria”.

Embora seja fartamente inspirado na Bíblia, as narrativas não devem ser encaradas como um tratado teológico, mesmo com as referências bíblicas escritas em notas de rodapé (num rigor acadêmico). É literatura. E, por isso, como tal, se permite às mais variadas licenças poéticas quando aborda alguns dos principais fatos narrados no Antigo e no Novo Testamento – sem descambar para uma abordagem carnavalizada.

A escrita de Mário Bentes (que já publicou contos em diversas antologias) é simples, clara, ágil, do tipo que não se preocupa com floreios, em procurar aquela palavra ou aquela frase exata. Não se detém em metáforas para poder seguir adiante, fluir, desprender-se depressa. Mesmo assim não abre mão da “linguagem poética”.

Os capítulos-contos em si são lineares e sem aqueles enfeites que poderiam poluir as narrativas. Sim, no plural, pois as histórias, embora se passem em espaços e tempos bem distintos, se complementam e se afirmam o tempo todo. Tudo narrado em períodos curtos. Tão ágil quanto os voos de Uriel sobre a terra, sobre a vida e sobre a morte dos homens, esse mistério.

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Resenha publicada originalmente no jornal A Crítica (Manaus - AM), caderno Bem Viver (página BV4), no dia 6 de abril de 2014.

site: http://blocodoluiz.wordpress.com/2014/04/14/um-romance-sobre-a-morte-esse-misterio/
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Bruna 21/10/2013

A arte de inovar a morte
A morte, tema que fascina o homem por envolver certeza e mistério, está sempre a rondar em livros, filmes e jogos, por exemplo. Se seu nome não é original, as várias faces que dão a ela podem ser. Em “A terra por onde caminho” (Editora Schoba), obra de estreia de Mário Bentes, o escritor inova o tema não ao travestir a morte de anjo, mas sim, ao dar a ela a brandura de uma flor. O anjo Uriel, o alado sombrio, é um apaixonado por estrelas, e esse seu amor faz com que se refugie no berçário onde as mesmas nascem e se apagam. Sua triste aparência de olhos vazios e asas negras alia-se à melancolia de sua personalidade: contida, sutil, romântica e lânguida. Chega até mesmo a aparecer terno quando caminha pela terra a suspirar por suas estrelas ou por aqueles que o chamam por sofrimento.
Seja no cume da mais alta montanha, nas profundezas do mais fundo abismo ou no ponto mais distante do oceano, a morte, com suas passadas secas, chegará aonde for. Ela, que desde os tempos mais remotos caminha por uma terra povoada por bondade e maldade, por prantos e risos, por suspiros, dores, prazeres e esperanças, leva a todos sem distinção. Seu canto triste, quase um lamento, é o anúncio de que é chegado o momento de deixar esse mundo. Mas somente os bons se deleitam com sua música; os maus se assustam com seus olhos vazios e com suas asas negras ao serem ceifados com sua presença. Uriel é uma sombra fria que assusta e alivia. Tal como todos os seres do universo, também é criação de Deus, o Único acima, o que determina a quem levar. Ao menos é assim na obra de Bentes.
O autor, que já foi cristão e hoje é ateu, tem como principal referência para os 40 contos que compõem o livro, passagens da Bíblia (ainda que haja contos com outras referências). Crer ou não em Deus de acordo com os moldes Ocidentais parte de princípios relacionados à cultura, à essência de um povo, mas também à essência individual, aos questionamentos. Mesmo quando se nega Deus, Ele se faz presente: negar é afirmar que algo existe, ainda que como fenômeno.
Nesse sentido, Bentes, como ex-religioso, toma de seus conhecimentos bíblicos para comentar ironicamente certas passagens, como por exemplo, a de um homem que foi apedrejado pelo simples fato de apanhar lenha no sábado, ou no sétimo dia, o dia do descanso. Segundo a Bíblia, “(...) Disse, pois, o Senhor a Moisés: certamente, morrerá aquele homem; toda a congregação o apedrejará fora do arraial”. Em seu conto, o autor mostra a injustiça sofrida pelo homem, que ao ver sua esposa e filhas quase perecerem de frio nas noites do deserto, decidiu buscar lenha em pleno dia proibido. Apesar da boa intenção, Deus deu ordens a Uriel, o anjo da morte, para que lhe tirasse a vida por desobedecer seus mandamentos. Então, o anjo negro cantou sua canção e imediatamente o homem deixou de sentir as pedradas, que lhe abriam feridas no corpo, atiradas por homens de determinado povoado.
E assim vai Uriel, a cumprir ordens do Único acima em seus desígnios de vida e de morte, sem jamais ser o responsável por levar crianças, inocentes, fracos e bondosos. Como também não é de sua culpa que malvados, vingativos e trapaceiros continuem a viver, ainda que o anjo se contente com o dia em que terá que leva-los— afinal, a morte chega para todos. Há ainda os humanos que chamam por seu nome, atormentando-o com seus pedidos de morte que nem sempre se poderão cumprir de imediato, já que a ordem maior tem que vir de Deus. Dessa maneira, um dos objetivos do livro é justamente o de questionar a morte: por que vir antes da hora? por que atinge a tantos inocentes? por que é cruel com uns e amena com outros? Diz o próprio Uriel, em uma resposta simplista, mas que conforta a muitos humanos, que somente Deus tem as respostas: “(...) seus desígnios [de Deus] pelo homem são desconhecidos, e cujo significado jamais será compreendido nem por toda a sabedoria humana, nem por suas ciências ocultas, nem por magia ou feitiçaria.” Com ironia, mais uma vez, o Único acima é o todo-poderoso, e sua imagem, por mais que seja amada pelo alado sombrio, arranha-se diante de tamanha incompreensão, como se fosse um equívoco aceitar de prontidão que uma criança morra de fome enquanto os vizinhos de seus pais estão fartos de alimentos, mas não ousam oferece-los à família carente.
Com um texto elegante e atraente, Bentes, que tem seu nome em diversas antologias, retoma toda a poesia que há no momento de morrer: um instante único e solitário, cujo resultado é apenas um corpo vazio. O autor mostra que independente da maneira e dos motivos, a morte é um fato melancólico que não é bom, nem mau, mas somente certo. Tal como a vida, a morte também carrega seus versos antagônicos de felicidade e tristeza. Assim, morte e vida são iguais. E Uriel é nada mais do que um anjo no berçário de estrelas.

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