Bruna 21/10/2013
A arte de inovar a morte
A morte, tema que fascina o homem por envolver certeza e mistério, está sempre a rondar em livros, filmes e jogos, por exemplo. Se seu nome não é original, as várias faces que dão a ela podem ser. Em “A terra por onde caminho” (Editora Schoba), obra de estreia de Mário Bentes, o escritor inova o tema não ao travestir a morte de anjo, mas sim, ao dar a ela a brandura de uma flor. O anjo Uriel, o alado sombrio, é um apaixonado por estrelas, e esse seu amor faz com que se refugie no berçário onde as mesmas nascem e se apagam. Sua triste aparência de olhos vazios e asas negras alia-se à melancolia de sua personalidade: contida, sutil, romântica e lânguida. Chega até mesmo a aparecer terno quando caminha pela terra a suspirar por suas estrelas ou por aqueles que o chamam por sofrimento.
Seja no cume da mais alta montanha, nas profundezas do mais fundo abismo ou no ponto mais distante do oceano, a morte, com suas passadas secas, chegará aonde for. Ela, que desde os tempos mais remotos caminha por uma terra povoada por bondade e maldade, por prantos e risos, por suspiros, dores, prazeres e esperanças, leva a todos sem distinção. Seu canto triste, quase um lamento, é o anúncio de que é chegado o momento de deixar esse mundo. Mas somente os bons se deleitam com sua música; os maus se assustam com seus olhos vazios e com suas asas negras ao serem ceifados com sua presença. Uriel é uma sombra fria que assusta e alivia. Tal como todos os seres do universo, também é criação de Deus, o Único acima, o que determina a quem levar. Ao menos é assim na obra de Bentes.
O autor, que já foi cristão e hoje é ateu, tem como principal referência para os 40 contos que compõem o livro, passagens da Bíblia (ainda que haja contos com outras referências). Crer ou não em Deus de acordo com os moldes Ocidentais parte de princípios relacionados à cultura, à essência de um povo, mas também à essência individual, aos questionamentos. Mesmo quando se nega Deus, Ele se faz presente: negar é afirmar que algo existe, ainda que como fenômeno.
Nesse sentido, Bentes, como ex-religioso, toma de seus conhecimentos bíblicos para comentar ironicamente certas passagens, como por exemplo, a de um homem que foi apedrejado pelo simples fato de apanhar lenha no sábado, ou no sétimo dia, o dia do descanso. Segundo a Bíblia, “(...) Disse, pois, o Senhor a Moisés: certamente, morrerá aquele homem; toda a congregação o apedrejará fora do arraial”. Em seu conto, o autor mostra a injustiça sofrida pelo homem, que ao ver sua esposa e filhas quase perecerem de frio nas noites do deserto, decidiu buscar lenha em pleno dia proibido. Apesar da boa intenção, Deus deu ordens a Uriel, o anjo da morte, para que lhe tirasse a vida por desobedecer seus mandamentos. Então, o anjo negro cantou sua canção e imediatamente o homem deixou de sentir as pedradas, que lhe abriam feridas no corpo, atiradas por homens de determinado povoado.
E assim vai Uriel, a cumprir ordens do Único acima em seus desígnios de vida e de morte, sem jamais ser o responsável por levar crianças, inocentes, fracos e bondosos. Como também não é de sua culpa que malvados, vingativos e trapaceiros continuem a viver, ainda que o anjo se contente com o dia em que terá que leva-los— afinal, a morte chega para todos. Há ainda os humanos que chamam por seu nome, atormentando-o com seus pedidos de morte que nem sempre se poderão cumprir de imediato, já que a ordem maior tem que vir de Deus. Dessa maneira, um dos objetivos do livro é justamente o de questionar a morte: por que vir antes da hora? por que atinge a tantos inocentes? por que é cruel com uns e amena com outros? Diz o próprio Uriel, em uma resposta simplista, mas que conforta a muitos humanos, que somente Deus tem as respostas: “(...) seus desígnios [de Deus] pelo homem são desconhecidos, e cujo significado jamais será compreendido nem por toda a sabedoria humana, nem por suas ciências ocultas, nem por magia ou feitiçaria.” Com ironia, mais uma vez, o Único acima é o todo-poderoso, e sua imagem, por mais que seja amada pelo alado sombrio, arranha-se diante de tamanha incompreensão, como se fosse um equívoco aceitar de prontidão que uma criança morra de fome enquanto os vizinhos de seus pais estão fartos de alimentos, mas não ousam oferece-los à família carente.
Com um texto elegante e atraente, Bentes, que tem seu nome em diversas antologias, retoma toda a poesia que há no momento de morrer: um instante único e solitário, cujo resultado é apenas um corpo vazio. O autor mostra que independente da maneira e dos motivos, a morte é um fato melancólico que não é bom, nem mau, mas somente certo. Tal como a vida, a morte também carrega seus versos antagônicos de felicidade e tristeza. Assim, morte e vida são iguais. E Uriel é nada mais do que um anjo no berçário de estrelas.