Fabio Shiva 15/12/2023
NÃO CREIO NAS BRUXAS, MAS ACHO QUE ELAS NÃO SÃO ASSIM TÃO MÁS
Sou muito devedor da imaginação de Lúcia Machado de Almeida. Aos 8 anos, li “O Caso da Borboleta Atíria”, que me deixou transido de medo. Foi a primeira vez que experimentei de fato a magia da Literatura: como era possível que ler aquela sequência de palavras impressas me provocasse emoções tão intensas?
Repeti a dose com outras duas histórias de suspense da mesma autora (todas publicadas na maravilhosa Coleção Vaga-lume): “O Escaravelho do Diabo” e “Spharion”. Quando li “As Aventuras de Xisto” (seguido por “Xisto no Espaço” e “Xisto e o Pássaro Cósmico”), eu já era fã de carteirinha de Lúcia Machado de Almeida. Na saga de Xisto a pegada é um pouco diferente da dos outros livros: a trama policial dá lugar à fantasia e à aventura. O marcante ponto em comum é a habilidade da autora em forjar vilões carismáticos e para lá de malvados.
Em “Aventuras de Xisto” os vilões são da nefanda raça dos bruxos, que o herói Xisto promete exterminar a todo custo. Ao ler agora pela segunda vez, ficou bem nítida a percepção de o quanto o mundo mudou desde que o livro foi publicado, em 1982. O vocabulário utilizado pela autora, por exemplo, me parece bem distante das crianças e adolescentes de hoje. Abri aqui uma página ao acaso para demonstrar esse distanciamento:
“Vendo-o em situação crítica, o covarde Mirtofredo arrancou-lhe o elmo e preparou-se para fustigar-lhe o rosto com o terrível chicote d’armas. Mais que depressa, Bruzo saltou sobre Barba-Coque e com a fenomenal força que possuía, conseguiu suster o golpe, segurando-lhe o braço.”
Outra diferença notável é de ordem mais sutil. Em “As Aventuras de Xisto”, os bruxos e bruxas são apresentados como seres necessariamente malévolos, tanto que o empenho do cavaleiro Xisto em destruí-los de uma vez por todas é o mote do livro. Quando eu li esse livro pela primeira vez, aos 10 anos de idade, essa concepção das “bruxas malvadas” estava bem de acordo com outras histórias que povoaram minha infância, de “João e Maria” a “Branca de Neve”. Contudo de lá para cá tivemos muitas narrativas de conscientização e de desconstrução da figura da bruxa como um ente maléfico, e que foram demonstrando como essa imagem serve a propósitos de hegemonia religiosa e de gênero, esses sim nocivos (embora muitas vezes inconscientes).
Essa ressignificação dos bruxos teve o seu apogeu na cultura pop e no imaginário coletivo com a série “Harry Potter”, de J. K. Rowling, que começou a ser publicada em 1997. Lembro até hoje de meu deleite ao ler o primeiro livro da série, “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, que fazia a sensacional divisão da sociedade entre “Bruxos” e “Trouxas”! Desde então, venho achando cada vez mais difícil não torcer pelas bruxas... e contra os caçadores de bruxas!
Por conta disso, foi um tanto melancólico o meu reencontro com o heroico cavaleiro andante Xisto.
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2023/12/nao-creio-nas-bruxas-mas-acho-que-elas.html
site: https://www.instagram.com/fabioshivaprosaepoesia/