3.0.3 13/01/2024
Minha palavra estala no espaço do dia. O que saberás de mim é a sombra da flecha que se fincou no alvo
“E neste instante-já vejo estátuas brancas espraiadas na perspectiva das distâncias longas do longe – cada vez mais longe no deserto onde me perco com olhar vazio, eu mesma estátua a ser vista de longe, eu que estou sempre me perdendo.”
Água viva (1973), de Clarice Lispector (1920-1977), ressalta e aprofunda traços de uma escrita fragmentada, com poucas descrições e contaminada pela musicalidade – características menos presentes em outros trabalhos da autora. Sem divisões, a obra é uma sequência de pensamentos e sensações que estabelece um profundo diálogo com questões existenciais, sob uma ótica tão singular.
Água viva é uma potência que nos arrebata pelo seu ardor, pela sua chama, pela sua violência e, sobretudo, pela sua vida, cadenciado numa linguagem que se aventura em um emaranhado espesso de palavras. O livro convoca imagens para experienciar o contato com o mundo e com a essência primordial da vida. Água viva, aliás, sugere fluxo contínuo, deslocamento, energia e o pensamento de que tudo está em constante movimento e em profunda mutação.
Na obra, alguém escreve para alguém, mas, como não sabemos quem são os portadores das vozes, cabe-nos supor que é um livro de ninguém para ninguém, ou seja, uma obra endereçada a nós, leitores. Em uma corrente de consciência contínua que nos suspende o fôlego, ressoa a voz que transita em diversos planos, revelando as suas inquietações, as suas buscas, os seus desejos, incorporando aspectos da natureza e movimentos animais. Com um enredo sutil (ou nenhum), é uma obra que não contém os elementos que normalmente estruturam e compõem um romance.
“Em redor da sombra faz calor de suor abundante. Estou viva. Mas sinto que ainda não alcancei os meus limites, fronteiras com o quê? Sem fronteiras, a aventura da liberdade perigosa. Mas arrisco, vivo arriscando.”
Sabe-se agora, neste “instante-já”: nós e a nossa liberdade, prisioneira e angustiante. Água viva é, de forma paradoxal, uma obra que transborda sensações presentes, trançando e transformando, ao mesmo tempo, o estado de inércia das coisas às coisas que são mutáveis. Nesse campo mágico, com água e fogo, rimbomba a voz que sussurra e grita o “instante-já” dentro da noite. No desenrolar de cada segundo que arquiteta o tempo presente – onde as fronteiras do “cá dentro” e do “lá fora” são cada vez mais nebulosas e imperceptíveis –, essa voz que nos atravessa ao longo da narrativa busca compreender, de forma obstinada, a sua solidão e a solidão daqueles que habitam esse tempo-espaço fragmentado de relações.
Assim, Água viva expõe a inquietude metafísica e o declínio psicológico, celebrando o núcleo da natureza mais íntima. E essa frequência narrativa que atravessa todas as instâncias da obra fragmenta e embaralha os parâmetros da escrita, desestabilizando a linguagem, mostrando o seu outro lado, que é o silêncio. Compreende-se, portanto, que não é uma obra feita para ser entendida, mas sentida (como a música), visto que transborda experiências profundas de vida, que solicita a cada frase um olhar atento e sensível. Espiral, Água viva é um livro que nunca termina, porque nunca começa.
“O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida e escura madrugada.”
Nos instantes em que a obra parece soar ilogicidade, prevalece a força da linguagem, sempre intensa e sensorial – aspectos marcantes nas obras da autora. É notável a maneira como essa voz narrativa transita entre assuntos, partindo quase sempre de aspectos triviais. Jogando com as palavras, fundando pensamentos e sensações, sopramos uma leitura que nos faz ultrapassar os limites do corpo e que nos conduz a outras zonas, mais sutis e místicas.
Aqui, trançando as palavras para erigir o tempo, fundimo-nos ao presente, lâmina afiada, e sentimos (não compreendemos) a correnteza que funda a alma e a arrasta. Sim, Água viva é uma correnteza que nos funda a alma, abrindo diálogo com todas as dimensões do tempo que nos lapidou, que nos lapida e que ainda nos lapidará. Para isso, basta mergulhar nessa correnteza, de peito aberto e mão cerrada, sem querer silenciar os fantasmas que espreitam na sombra, sem querer represar as sensações que pulsam na boca.
“Evola-se de minha pintura e destas minhas palavras acotoveladas um silêncio que também é como o substrato dos olhos. Há uma coisa que me escapa o tempo todo. Quando não escapa, ganho uma certeza: a vida é outra. Tem um estilo subjacente.”
Durante a leitura, somos capturados por essa centelha temporal que brilha de quando em quando: o “instante-já”. É uma voz tão íntima do mundo que está se distanciando, partindo, mas que antes nos deixará na garganta o sabor amargo das coisas que tentamos esquecer, revivendo aquilo que tentamos silenciar. Água viva é uma obra que solicita a nossa intervenção.
Se ainda nos é complexo desvendar Clarice Lispector nos dias de hoje, o que nos fica claro aqui é que não há qualquer chave de leitura que nos faculte uma compreensão correta dessa obra enigmática e inquietante. Entre a prosa e a poesia, Água viva é um livro brilhante e desafiador que celebra, com uma alegria intensa, com uma tal aleluia, a existência de tudo o que existe – profundamente.
“Sim, o que te escrevo não é de ninguém.”