spoiler visualizarElaine 04/07/2023
Um livro que desperta muitas reflexões e que vale cada minuto da leitura
Eu comecei a ler esse livro porque precisava escrever sobre obras com representatividade LGBTQIA+ e ao pesquisar cada letra descobri que praticamente não há nada sobre intersexual, é a letrinha mais invisível da sigla. Felizmente em minha pesquisa descobri um vídeo do Cobra Letrada no Youtube onde o João indicava livros sobre o tema, incluindo Menino de ouro. E sou muito grata a ele por isso, porque foi dessa forma que, meio sem querer, acabei fazendo a minha melhor leitura do primeiro semestre de 2023. Sabe aquele tipo de história que te deixa com mil questões, te faz pensar nela o tempo inteiro e querer falar dela com todo mundo? Pois é, foi assim que eu me senti ao terminar e mesmo durante a leitura. Então essa resenha é para compartilhar um pouco desses sentimentos.
Bem, vamos lá: O livro é fluido, a história interessante, os personagens cativantes.
Eu até diria que é o tipo de história que todo mundo deveria ler (nem que fosse para saber mais sobre intersexualidade e ficar motivado a pesquisar depois). Só que não vou dizer isso porque, na verdade, não acredito que esse livro seja para todo mundo. Ele tem gatilhos muito pesados. Logo nas primeiras vinte paginas me surpreendi com uma cena de abuso sexual que é a mais angustiante que já li na vida. Quando comecei a ler eu já desconfiava que algo do gênero ia acontecer, dava a entender pela sinopse. Então nem chega a ser um spoiler, até porque é o abuso que vai desencadear todo o desenrolar da história. O que eu não imaginava é que fosse logo no inicio e que fosse tão explícito. Tive que parar e respirar um pouco antes de prosseguir porque foi bem difícil passar por essas páginas. Para ter uma ideia, embora esse seja o tipo de livro que dá vontade de reler logo após terminar e eu, de fato, tenha relido alguns capítulos, não tive coragem de voltar nesse e olha que nem costumo ter problemas com gatilhos. Outro alerta é que, apesar dessa ser a cena mais explicita, há mais gatilhos, como depressão e aborto, por exemplo. Então é bom estar cientes antes de começar. Outra coisa que vale avisar é que, por vezes, em algumas passagens a autora detalha demais algumas coisas e isso pode incomodar algumas pessoas. Para mim foi tranquilo. Agora se nada disso te impedir, garanto que a leitura vale muito a pena.
O livro é narrado por vários personagens diferentes: o protagonista Max (o garoto de ouro do título), o irmão caçula de 10 anos (que tem os capítulos mais fofos e divertidos), a médica que cuida de Max após a violência sofrida, a mãe dele, o pai e Sylvie, colega de escola que é também o "crush" de Max. E é muito legal porque você sente a voz de cada um, o quanto são diferentes. Você consegue ver um adolescente alegre e saudável se transformando em um jovem deprimido quando Max fala, uma criança de 10 anos nos capítulos de Daniel, uma jovem excêntrica e com alma de artista nos de Sylvie, um pai e uma mãe nos capítulos de Steve e Karen e uma médica sensível nos da Archie. E essa conjunção de diferentes pontos de vista torna a história muito mais interessante e contribui demais para a trama.
Antes de começar, eu achava que Max, talvez fosse um garoto popular, mas, irritante e metido, como costuma acontecer tantas vezes com personagens populares de filmes americanos. Mas não é nada disso. Não sei se é porque o livro é britânico ou não tem nada a ver, mas, Max é uma pessoa adorável, é muito fácil se identificar com ele. Quando a história começa ele tem 15 anos, logo faz 16 e ele é realmente muito legal com todos, um ótimo irmão mais velho, um ótimo filho e um ótimo amigo, além de ótimo aluno e esportista. E apesar de ele se esforçar muito sim para ser perfeito, você consegue ver que ele é bom de verdade e quer realmente fazer as pessoas à sua volta felizes. Por isso é bem doloroso acompanhar o personagem indo em um crescente de depressão, que faz você se preocupar com ele o tempo todo e ter medo de onde aquilo vai parar.
Graças as passagens de Karen, você acaba compreendendo também que toda essa busca por perfeição de Max tem a ver, não apenas com sua intersexualidade, mas, com o modo de ser da mãe dele.
Tenho uma amiga que diz que quando nasce uma mãe nasce um ser naturalmente culpado. Karen é isso ao extremo. Ela é terrivelmente perfeccionista, se cobra o tempo inteiro e se culpa por achar que não é uma mãe suficientemente boa. Ela acha que é sua culpa Max ser intersexual, que é sua culpa Daniel, o caçula, ser rebelde e por aí vai. Ao mesmo tempo conseguimos compreender que ela própria foi criada por uma mãe que cobrava perfeição e que até tenta ser diferente com os filhos, só que muitas vezes falha miseravelmente. Vi muitas resenhas que a colocam como vilã, mas, não senti dessa forma, mesmo que ás vezes dê muita raiva dela. Aliás uma das coisas que mais gostei no livro é que achei todos os personagens muito humanos. Até senti raiva ou irritação de um ou outro narrador em certas passagens, mas, nunca repúdio ou ódio. O único por quem não dá para sentir qualquer empatia ou sentimento positivo é Hunter porque é impossível sentir empatia por um estuprador. Em relação a ele a única coisa que torci o livro inteiro foi para que fosse punido. Achei uma escolha inteligente da autora não colocá-lo como narrador, pois poderia cair no perigo de romantizar o abuso. Felizmente isso nunca acontece. Mas, voltando a mãe de Max, perto do final, ela tem uma atitude muito difícil de perdoar e por isso entendo quem a vilaniza. Porque, por um lado, dá para ver que ela realmente ama o filho e acredita estar fazendo o melhor para ele. Por outro, quando ela escolhe por Max algo que diz respeito ao corpo dele e que é o oposto do que o filho tinha lhe pedido em um momento muito doloroso, isso me faz pensar que não deixa de ser mais um abuso. Novamente, o "meu corpo, minhas regras" não se fez valer para o protagonista. Ao mesmo tempo, entendo que era uma situação limite e de muita pressão para Karen também e que agiu pensando em Max e não em si mesma. Isso me fez questionar quantos pais, em nome do amor que sentem pelos filhos e do que acreditam ser melhor para eles, tomam atitudes terrivelmente equivocadas (como aqueles que os obrigam a seguir uma profissão ou, pior, tentam que mudem a orientação sexual), quantos pais porque geraram seus filhos não se sentem donos da vida e dos corpos deles e não conseguem vê-los como seres independentes de si ? Pensei muito sobre isso durante os capítulos narrados por Karen. Já Steve é um pai carinhoso e respeita bem mais as escolhas do filho, o ouve bem mais. Foi ele que quis um nome neutro quando Max nasceu, foi ele que não deixou operar o seu bebê que "funcionava perfeitamente bem", mesmo em uma época em que isso era o comum. Só que Steve também não é perfeito. Assim como Karen, ele nunca conversou com o filho sobre a intersexualidade e, envolvido com seu trabalho, muitas vezes é omisso e deixa a responsabilidade das coisas nas mãos da esposa, o que só a faz se sentir mais pressionada. Só que assim como Karen, o leitor consegue ver o quanto ele ama realmente aqueles filhos e aquela família. No meu ponto de vista, os pais de Max não são vilões, são pais amorosos que cometem erros (por vezes graves), seja por excesso (mãe), seja por por omissão (pai). Mas ambos se importam, ainda que de forma diferente.
A médica, é outra ótima personagem. Ela atende muitos adolescentes de diferentes orientações sexuais e gêneros, mas, nunca tinha atendido uma pessoa intersexual. A partir de Max ela se interessa em aprender sobre o tema e isso faz com que o leitor aprenda junto. É muito legal como, mesmo mantendo o distanciamento médico, ela é sensível e preocupada com o bem-estar do paciente. Ela não vê Max como uma cobaia ou um "algo defeituoso" que precisa ser "consertado", como outros médicos fizeram durante toda a vida do menino. Vê apenas como uma pessoa. E as reflexões dela me fizeram ter as minhas próprias, enxergar coisas nas quais eu nunca tinha parado para pensar. Como, por exemplo, o fato de uma pessoa trans, como ela diz num certo momento, talvez ser o oposto de uma pessoa interesexual. No primeiro caso, muitas vezes a sociedade faz pressão para que não opere alegando que não deve mudar a natureza. No segundo, a pessoa pode estar perfeitamente bem com seu corpo e não querer operar, mas, a pressão é contrária, é para "corrigir" o "defeito", Ora, mas, não é a natureza também? Ou seja, em nenhum dos casos se trata da natureza, mas, daquilo que se estabeleceu como padrão e, mais uma vez, a não respeitar o direito do outro sobre seu próprio corpo. Não há nada de natural nisso.
Para finalizar, fiquei pensando também na coisa de ser menino ou menina, homem ou mulher. Confesso que até pouco tempo atrás isso para mim era apenas uma questão dada. Fosse mulher cis ou trans, homem cis ou trans, achava que somente isso era possível. Mas ao ler esse livro e me deparar com um personagem que, como é dito não é menino, nem menina, ou que talvez seja ambos, ao pesquisar depois e ver que essas pessoas realmente existem e que algumas tiveram e tem vidas bem difíceis apenas por terem nascido assim, me dei conta do quanto são realmente "invisíveis", do quão pouco sabemos sobre elas. Sequer há um termo para definir seu gênero. Agora é até um pouco mais comum "não binário" em formulários e documentos, o que pode ser uma opção. Mas, até bem pouco tempo atrás só existia a opção feminino e masculino. E nem sei se bom binário é um bom termo, ainda que pelo menos seja algo. Isso só me faz perceber o quanto é necessário que existam mais histórias na mídia e na literatura que abordem o tema, de preferência tão bem escritas e tão tocantes quanto esse livro.