MatheusPetris 29/12/2023
O romance policial, naturalmente, é construído por concatenações violentas, quase beligerantes. Uma gradação que busca atrair o leitor, capturá-lo. Os corpos vão se empilhando, as possibilidades se multiplicando, o novelo pouco a pouco sendo desenrolado. Solta-se uma ponta: abre-se espaço para outra. Patricia orquestra isso (também) pelos capítulos — estratégica clássica do romance de folhetim —, mas também em sua própria internalidade, em suas divisões. Os capítulos não se limitam à cenas, alguns são povoados por várias, embora unidos por acontecimentos, temas. Entretanto, não é só pela estrutura que Patrícia nos impele ao frenesi. Isso só é possível pela simplicidade de sua trama, pela linearidade e clareza da mesma; se fosse, por exemplo, um enredo próximo de um Raymond Chandler, os efeitos não teriam essa força.
Há alguns procedimentos de construção que aceleram o ritmo da narrativa. Falarei de alguns deles, especificamente a repetição e a multiplicidade de vozes que, mesmo sendo procedimentos unitários, também se misturam, se retroalimentam. O que quero dizer com repetição? A simples repetição de palavras, de elementos da narrativa.
Vamos a um exemplo: A dor de dente. A dor de dente, além de matéria ao enredo que desencadeará as possibilidades de Máiquel se profissionalizar — se tornar um matador de fato —, se entrecorta no meio das cenas, de diálogos, de pensamentos. Embora pareça interromper o fluxo narrativo, a repetição o intensifica e nos aproxima mais do narrador, da personagem-protagonista. Sua mente em ebulição, ele lidando cada vez com mais problemas. Um segundo exemplo seriam seus sapatos. Novamente, matéria ao enredo, pois Máiquel surta com o presente de Cledir (sapatos novos) enquanto na verdade se sentia impelido a conquistar para vestir novos sapatos. Os sapatos observados pelo vidro da mesa; a classe média reunida e bem vestida, ele com sapatos furados. Não só comprará sapatos e se sentirá milionário com eles, como comprará uma mesa de vidro, justamente, para observar seu calçado e de Érica.
É claro que há ironia. Um homem que faz escambo com um dentista — dentes tratados e o assassinato de ladrões em troca — e busca ganhar dinheiro para comprar um sapato. A entrada de alguém marginalizado em um mundo de poder, sucesso, vai ser atravessada por dúvidas, por um ódio que, pouco a pouco, se alastra, mas também por uma confusão mental, por um dificuldade de se ater ao que passa em sua frente. Enquanto esse narrador-personagem fala, também descreve seus interlocutores, seus diálogos, suas ações, e também seus pensamentos, memórias, palavras.
Esse segundo procedimento a que me refiro, o amálgama de vozes, permite ao narrador praticamente sair de sua voz em primeira pessoa e proporcionar um discurso direto livre (por vezes indireto também). Não há travessões, embora os diálogos sejam diretos. São diálogos, pensamentos, ações, tudo acontecendo ao mesmo tempo, no presente. Um frenesi absoluto. Máiquel sabe de seu desenlace, escreve sobre o passado, apesar de se ater ao presente, escolha essa, é claro, que Patrícia mobiliza justamente pensando no efeito: mistério. Ao saber e afirmar que sabe, além de indicar o suspense, nos atiça ao mistério.
Um exemplo para ilustrar. Enquanto Érica xinga Máiquel por não fazer nada com relação ao assassinato de Marcão — amigo deles preso por tráfico e que Santana mandou matar —, por cima da voz de Érica (falando em discurso direto livre, antecedido por dois-pontos), Máiquel se incomoda pela presença de pessoas rindo no restaurante e, simultaneamente, vai se recordando das palavras ditas por Marlênio (o pastor), enquanto socava ele — a palavra soco vai se repetindo ao longo do período, vai se misturando às orações. Tudo isso em um único período: a repetição, a voz de Érica, a memória.
Falemos agora sobre as personagens. Os pensamentos de Máiquel fazem jus a alguém ignorante, a construção de personagem reflete-se em verossimilhança, aqueles que o cooptam sabem um pouco mais do que ele e possuem objetivos claros: a justiça com as próprias mãos, contudo, as mãos serão a de Máiquel. Máiquel sabe sempre menos que os outros.
As demais personagens parecem atravessá-lo sem que ele tome conhecimento, ele é afetado por todos. Mas isolemos as figuras femininas para refletir um pouco sobre essa questão: Cledir, Érica e Gabriela. Além das divisões mencionadas, o livro é dividido em duas grandes partes. A primeira, Máiquel é um simples assassinado do bairro; na segunda, se torna um dos chefes de uma corporação, de uma milícia, e se torna o matador de fato. Em todas as divisões (capítulos e partes), a personagem feminina parece ser o catalisador do desenrolar narrativo. Talvez, a que mais se aproxime de uma femme fatale, seja Érica. As demais, nem precisam se esforçar para que Máiquel seja de alguma forma afetado por elas. Todas, indireta ou diretamente, participam de sua ruína. Mas também de sua ascensão. Estão sempre ao seu lado, por mais que ele tente se livrar delas — e alguma delas ele o faz literalmente —, elas retornam, mesmo que em memórias, alucinações.
Os procedimentos mencionados, além de produzirem o efeito descrito, talvez, nos permitam lançar uma pergunta: tais recursos foram mobilizados para que Máiquel fosse observado com algum tipo de loucura? O final do romance, quando Máiquel está fugindo, parece indicar uma loucura, ele escuta vozes, alucina, acredita que está cercado, será preso. Porém, nos perguntamos, ele não se mostra cercado de vozes, sua mente povoada de um turbilhão de informações ao longo do romance inteiro? Ou uma outra opção: emula os efeitos da cocaína? Embora ele pare de cheirar na segunda parte, pode ser uma opção.
Independente da função pretendida por Patrícia Melo, esses procedimentos geraram outras. E são justamente essas outras, que fazem de O Matador o ótimo romance frenético que é. Em conversa com um amigo, ele mencionou que a segunda parte é claramente um thriller, que apenas na segunda parte, que o suspense abraça o romance. Ele não poderia estar mais certo. O fato é que Patrícia, além de mobilizar os procedimentos de forma extremamente consciente, maquina suas divisões também de forma detida. Isso, é claro, se reflete na ótima qualidade de seu romance.