Raphael 03/02/2022Romance definitivo sobre a escravidão e o pós-escravidão20º livro de 2021 ? Os Tambores de São Luís
Autor: Josué Montello
Edição Especial com o apoio da SECMA.
[Resenha atrasada]
Nota: 5,0/5,0 ? Estatura de clássico, o romance definitivo sobre a escravidão e o pós-escravidão
São Luís do Maranhão, 1915. É noite. Da Casa Grande das Minas, na Rua de São Pantaleão, ressoam os tambores rituais, ?graves, nervosos, compassados, guardando intacto o seu batuque primitivo?. A escravidão, formalmente, não existe há quase três décadas, embora as suas marcas sejam facilmente identificáveis ali mesmo, entre os circunstantes, muitos dos quais sentiram no dorso a violência do chicote e padeceram as agruras do cativeiro. Entre eles, enredado por uma aura de respeitabilidade, construída pelos longos anos de luta pelo fim deste crime social, encontramos um negro octagenário, que, no momento, enlevado pela cadência dos instrumentos, sente algo de indefinível, como que reintegrando-se ?ao mundo mágico de sua progênie africana?. Ecoa em sua alma o clamor da ancestralidade. É Damião, herói deste romance.
Ficamos sabendo, logo de início, que a trineta de Damião está para nascer a qualquer momento e que ele, deixando a Casa das Minas, tenciona ir ao seu encontro, deslocando-se à pé até o bairro da Gamboa, que dista dali algo em torno de dois quilômetros. Ao longo da noite e do romance, acompanharemos Damião ao longo desse trajeto, sempre acompanhados pelo ressoar evocativo dos tambores ancestrais, que nos conduzirá através de suas reminiscências, fazendo ressurgir diante dos nossos olhos toda a violência e injustiça de um Brasil escravocrata.
Assim tem início esta obra monumental de Josué Montello, um romance histórico de fôlego cuja narrativa épica dura o tempo de uma noite e a noite de um século, no trânsito permanente entre o passado e o presente, entre o sentido do agora e o mergulho na carne de um negro escravizado que ousou ascender socialmente. Neste mergulho, o leitor, atônito, verá passar diante dos seus olhos uma galeria de mais de 400 personagens, entre figuras inventadas e personalidades históricas ficcionalizadas.
Desdobrar-se-á, portanto, a saga de um negro que, tendo nascido na senzala de uma fazenda do interior maranhense, conheceu as agruras da escravatura, padecendo no tronco e na cafua; que experimentou a fuga e a resistência nos quilombos; que, uma vez capturado, viu o pai preferir ser estraçalhado pelas piranhas, misturando o seu sangue às águas de um rio, a retornar ao jugo do chicote; um negro que, a despeito do ódio e da crueldade que lhe votava o seu senhor, acabou sendo bafejado pela sorte ao conseguir se colocar sob a proteção da Igreja ? ou mais propriamente de um bispo ? o que lhe abriu caminho para a alforria e para uma relativa ascensão social através da cultura. Uma ascensão, frise-se, conquistada a duras penas, lutando contra uma sociedade furiosamente racista que tudo fazia por adestrá-lo, por subjugá-lo e, se não lograva fazê-lo, por humilhá-lo. A condição de Damião, a certa altura, faz-me lembrar a pena de Darcy Ribeiro, que deixou gravado em O Povo Brasileiro o seguinte trecho: ?Ascendendo à condição de trabalhador livre, antes ou depois da abolição, o negro se via jungido a novas formas de exploração que [?] só lhe permitiam integrar-se na sociedade [?] na condição de um subproletariado, compelido ao exercício de seu antigo papel, que continuava sendo principalmente o de animal de serviço.? Animal de serviço não chegou a ser... mas houve momentos em que muitos dos escravos de São Luís, por desafortunados que fossem, estavam em melhor situação que Damião, pois pelo menos tinham o que comer.
Sob a proteção do bispo e do Padre Tracajá, este um mulato, Damião estuda para ser padre. Destaca-se em todas as cadeiras do Seminário, converte-se em um aluno notável e a erudição adquirida lhe granjeia afetos e desafetos, na medida em que seu desenvolvimento notável colhe também o despeito de colegas e professores. Por fim, a Igreja corta-lhe as asas, impedindo a sua ordenação. Acabrunhado, não se rende Damião. Faz-se latinista e professor, mas paga um preço alto ao denunciar, da cátedra, diante de uma turma de alunos brancos, as injustiças da escravidão, com o sangue a queimar-lhe de indignação com a brutalidade do assassinato de uma negra que ousara acoitar escravos fugidos.
A trajetória de Damião, no entanto, está longe de ser linear. Consciencioso do crime perpetrado contra os negros, revolta-se. Humano, vacila e vivencia um perene conflito interno, ressentindo-se da acomodação a que sua situação privilegiada lhe convidava, quando a cultura auferida lhe impunha um dever moral: insurgir-se contra a ordem escravista e fazer algo pelos seus irmãos e irmãs que ainda padeciam a violência do cativeiro..
Para mim, em particular, enriqueceu muito a experiência de leitura ter podido ir a São Luís do Maranhão enquanto lia o romance, caminhar pelas mesmas ruas que Damião caminhou, observar os casarões que eram ao mesmo tempo testemunhas e cúmplices daquele Brasil escravocrata, contemplar as fachadas dos sobrados e olhar para os beirais enquanto apurava os ouvidos, à procura da ?bulha brejeira? dos bem-te-vis, tão destacada pelo narrador montelliano. E ter podido conhecer a Casa de Cultura Josué Montello, ouvir sobre a vida e a obra do escritor, conversar com pessoas que conviveram com ele, conhecer o seu processo de escrita ? e saber, por exemplo, que Montello costumava escrever sobre um mapa da cidade de São Luís, generoso no detalhar do trajeto percorrido pelo seu herói romanesco, indicando cada rua, cada beco, cada travessa, cada casarão, enquanto fazia emergir do romance a cidade secular. Montello, sem dúvida nenhuma, constrói um grande retrato de São Luís, digna moldura de uma narrativa que tem estatura de clássico da literatura brasileira, mas que infelizmente é em grande medida desconhecida.
Com apuro estético ? apesar de me ter causado algum incômodo o uso de artigo definido antes de nomes próprios, fora do contexto da oralidade, própria dos diálogos ? e sem adquirir um tom panfletário, ?Os Tambores de São Luís? se constitui também como um romance-denúncia. Diz sobre o povo que somos, sobre o negro na escravidão e no pós-escravidão, diz sobre o racismo.
E o final deste romance ? as duas últimas páginas, os últimos parágrafos... esse final, meus caros, consegue fazer com que um romance de que eu já vinha gostando muito, ao longo de toda a leitura, crescesse ainda mais. Sem sombra de dúvida, uma das melhores leituras de 2021.