gleicepcouto 11/06/2014Escrever resenha de um livro da Lionel Shriver é sempre um desafio. Não só porque essa norte-americana é considerada uma das melhores escritoras da atualidade. Nem mesmo porque seus livros sempre são sucesso de público e crítica. Ou porque seu livro Precisamos Falar Sobre O Kevin teve uma adaptação ótima (e premiada) no cinema. Não, nada disso. Escrever a resenha de uma história dessa escritora é difícil pois mexe com a gente, alcançando alguns lugares que você preferia que ficassem intocados. É praticamente impossível terminar a leitura de uma obra dela e se considerar a mesma pessoa de quando antes de começar. Esse é o efeito Shriver.
E ela não faz isso de modo invasivo, como se te deixasse de castigo em um banco no canto da sala e dissesse: "Ok, vamos falar sobre algo que te incomoda." É algo tão natural a ela, que é como se chamasse para uma conversa na hora do café, sabe? E ali, naquele momento informal, abrisse a mesa de discussões, uma mais polêmica que a outra. Ela vê a sujeira debaixo do tapete e, não satisfeita de apenas mostrá-la aos outros, a tira de lá e assopra, espalhando para tudo quanto é lugar.
Por isso que não tenho receio de soar repetitiva quando digo que Lionel é diva e conseguiu, mais uma vez, acertar. Grande Irmão (Intrínseca) é um livraço. Nem vou perder tempo em análise técnica, pois Shriver, após tantos anos de experiência e demonstrando um talento nato para contar uma história, está acima disso. Não preciso dizer que as personagens são bem desenvolvidas, que a estrutura da narrativa é impecável, muito menos que o enredo é sólido. Isso tudo já é implícito no pacote Shriver: compre um livro e leve um "acorde!" para casa (até porque a autora é bem direta e não poupa a realidade crua). Então, vou me ater às impressões, debates internos e emoções que afloraram em mim durante a leitura. Já aviso que não foram poucas.
O assunto da vez é obesidade. Em um mundo onde, segundo pesquisa recente da ONU (Organização das Nações Unidas), 500 milhões de pessoas são obesas e aproximadamente 1,4 bilhão sofre com excesso de peso, nada mais propício para se falar sobre. Ela, porém, não se atém somente a uma questão de ser gordo, de saúde e afins. Trata, antes de tudo, da questão da imagem. Percebemos isso até mesmo no negócio que a protagonista, Pandora, tem: uma empresa que fabrica bonecos personalizados que reproduzem falas escolhidas pelos seus clientes. A questão é que essas falas geralmente evidenciam um lado não muito bacana da pessoa, como se jogasse na cara dela um defeito. Exemplo: imagina dar um boneco parecido com o seu amigo pessimista, e esse brinquedo repetisse frases dele como "Óh, vida, óh azar." e outras que evidenciassem seu pessimismo? Isso realmente seria uma brinquedo agradável? Ou apenas um modo de dizer nada corajoso de que aquela característica da pessoas lhe incomoda?
Um outro ponto que ela faz questão de frisar é o quanto as pessoas se sentem ofendidas por outra pessoa ser gorda. É um problema íntimo e pessoal, que passou a ser social. De repente, todos se preocupam com o que os outros comem, de um modo que faz parecer que a pessoa obesa está fazendo alguma coisa contra terceiros. Quando, na verdade, no máximo, pode estar fazendo algo contra a sua própria saúde. Qual o limite para metermos o bedelho no prato alheio? Claro que, com isso, ela não está levantando a bandeira de "Uhul, 'bora comer loucamente!". Soa mais como um aviso: "Ops, tem que ter um bom-senso aí, gente. Vamos defender a saúde e combater o desperdício, mas sem ultrapassar a linha limite da vida privada de cada um."
Na verdade, a autora dá a entender que há um vazio em todos nós. Concordo muito com isso. Há uma fome, que tentamos, desesperadamente, saciar. Algumas pessoas tentam eliminá-la com a comida, outras, com bebida, milhares com drogas ou esportes (sim, sim!) ou o que for. Todos buscamos algo que preencha esse buraco que há na alma humana. A questão é que não entendemos essa fome de viver, de realizar nossos sonhos, e ficamos batendo cabeça, tentando resolver o problema. No livro, por exemplo, Edison estava em um ciclo vicioso: comia porque estava triste e estava triste porque comia. Como interromper essa rotina?
Ao longo das páginas, somos bombardeados por situações que nos fazem refletir, expandindo a discussão que Shriver propõe. Temos Fletcher, o natureba, viciado em comidas naturais e exercício físico; o enteado é um garoto deslumbrado que se acha genial, quando não sabe nada da vida e nem é tão excepcional assim (olha a questão da Geração Y aí!); o pai de Pandora e Edison, roteirista de tv famoso, que fez fama com um seriado onde escancarava a vida da família, mas hoje é apenas uma pessoa esquecida pela indústria do entretenimento; e, claro, a relação em si dos irmãos Pandora e Edison.
Perto do final, o livro vai se enveredando para um caminho pouco usual da autora, mas de repente, vemos a verdadeira Lionel Shriver. Pena que não posso contar, senão seria um baita spoiler. Só posso dizer que, quando pensei que iria me decepcionar com a escritora, eis que ela me surpreende.
Com coragem, Lionel Shriver fala mais do que obesidade em Grande Irmão. Fala sobre o excesso em nossas vidas, na gorduras que cultivamos aqui e ali e que nem sempre têm relação com a forma física: são apenas resultado de subterfúgios para tentar camuflar uma insatisfação que não conseguimos enfrentar, nem nomear.
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