jota 28/11/2019Cuidado com gente que tem pés de ganso...Único livro de Isaac Beshavis Singer (1904-1991), prêmio Nobel de Literatura de 1978, que li até o momento. Embora conhecesse o escritor através de dois filmes baseados respectivamente num conto e num romance de sua autoria, Yentl (1983) e Inimigos, Uma História de Amor (1989). De autores com ascendência e temática judaica, caso de Singer, Philip Roth (1933-2018) é de quem mais aprecio ler romances. Histórias curtas Roth escreveu poucas, no início de sua carreira: elas formam o volume Adeus, Columbus, muito bom.
Quanto a contos envolvendo judeus ou questões judaicas mais profundamente, acho que os melhores foram escritos por Bernard Malamud (1914-1986), e podem ser encontrados no excelente volume O Barril Mágico. Mas Singer, neste Breve Sexta-Feira, também vai fundo no tema, mesmo se valendo de muitos elementos fantásticos para tal. Desse modo, suas histórias não dialogam tanto assim com as de Roth ou Malamud; seu humor excessivamente mordaz tem pouco a ver com, por exemplo, aquele das narrativas de Woody Allen, onde os judeus e suas idiossincrasias aparecem de forma menos sombria do que aqui, são mais cosmopolitas e muito menos envolvidos com espíritos e ou coisas fantásticas.
As dezesseis histórias de Breve Sexta-Feira são carregadas de cultura judaica, especialmente nos seus aspectos religiosos, mitológicos e sobrenaturais. O diabo, fantasmas, demônios, feiticeiras, anjos e homens santos aparecem em quase todas elas. A maioria traz personagens carregando uma enorme carga de crenças supersticiosas (e até mesmo preconceituosas por vezes) ao lado dos preceitos do judaísmo, especialmente aquelas passadas há muitos anos, nos inícios do século XX, em vilarejos da Polônia, onde nasceu o autor. Só para citar uma curiosidade: muitos acreditavam que se um familiar, vizinho ou amigo tivesse pés de ganso tratava-se, sem dúvida, de um demônio. Que, claro, faria de tudo para esconder esse detalhe anatômico de todos...
Alguém já afirmou que Singer tentou humanizar os demônios e demonizar os humanos. Talvez por isso é que em O Último Demônio, um dos pontos altos do livro, a frase inicial do conto seja exatamente a seguinte: “Eu, demônio, dou minha palavra: não restam mais demônios. Por que demônios, quando o próprio homem é demônio? Por que arrastar para o mal alguém já convencido do mal?” Pois é. O Holocausto comprovou isso devidamente, não? Os nazistas não eram humanos nem animais, portaram-se como verdadeiros demônios durante a guerra...
De todas as histórias uma é bastante conhecida: Yentl, o Rapaz da Yeshiva, teve uma versão cinematográfica décadas atrás (um tanto estranha, pois se transformou num musical), que fez bastante sucesso. Yentl é uma moça com comportamento pouco feminino e que deseja fazer seus estudos da Torá e do Talmude, coisa proibida pela religião. Depois da morte do pai deixa seu vilarejo, disfarça-se de homem, passa a se chamar Anshel e entra para uma yeshiva, instituição judaica (ou faculdade) onde se estudam os textos religiosos tradicionais. Ela conhece um rapaz (Avigdor) e uma moça (Hadass), seus sentimentos mudam e as coisas saem um tanto fora do que planejara...
Bem, pensei que fosse apreciar mais os contos de Singer, mas o excesso de demônios cansou um pouco (a capa da edição do Círculo do Livro é perfeita ao indicar seu conteúdo: por sobre as torres de uma sinagoga paira um rabo de capeta). Ainda assim recomendo, além dos citados, os seguintes: Grande e Pequeno, Sangue, Debaixo da Faca, Zeidlus, o Papa e claro, aquele que dá título ao volume e o encerra, Breve Sexta-Feira, uma das histórias mais leves e interessantes do volume.
Lido entre 21 e 27/11/2019. Minha avaliação: 3,5.