spoiler visualizarAllanM 09/08/2012
Primo Levi, como se sabe, é mais conhecido como autor de testemunho por ter escrito o notório “É Isto um Homem?”, um relato como prisioneiro de campo de concentração durante a segunda Guerra Mundial; esse fato, o de ser conhecido apenas por esse livro, é algo que acho consolável pelos motivos que vou expor adiante.
“Histórias Naturais”, ao lado de “Vício de Forma” e “Lilith”, compõe uma trilogia magistral: trata-se de contos breves que abordam o fantástico, a ficção científica e também o relato testemunhal (este em especial em “Lilith”). Quando lançado, “Histórias Naturais” causou desconforto e gerou críticas ao autor: como pode ser que um escritor comprometido com o fato de ser o relato vivo das atrocidades dos campos de concentração entrega-se a experimentos de fantasia e literatura de gosto duvidoso? Imaginava-se que Primo Levi deveria ser aquela figura para sempre marcada pela história, um museu vivo, um mero químico de formação que havia presenciado algo de grande importância para a humanidade. Quem faz uma leitura superficial de “Histórias Naturais” não consegue perceber o quanto de Lager há neste livro: o mundo do horror dos campos passa para o cotidiano, por meio de invenções e descobertas científicas despersonalizantes, de aparatos criados com propósitos racionais, mas que mostram, aos poucos, sua matiz irracional. Não se trata, de modo algum, de ficção científica barata.
E esta é a característica principal e superior, e algo praticamente nunca encontrado em nenhum outro autor, mesmo de ficção científica: a simetria entre racional e irracional, ou seja, o fato de que há efetivamente no mundo natural um meta-bem, isto é, uma condição na qual bem e mal andam juntos, inseparáveis, por mais que um ou outro se mostre menos num dado momento. Porém, a racionalidade humana e sua intenção para o progresso aparente fazem com que a faceta “má” (ou simplesmente a necessidade natural) seja suplantada, mascarada ou negligenciada; seja intencionalmente, seja pela incapacidade humana de conseguir prever ou compreender que o racional possui essa característica.
Como memorialista do terror do Lager, aparentemente Primo Levi ficou encarregado de ser o arauto do otimismo e da renovação, da vitória sobre todo o mal e sobre o maior mal já visto pela humanidade; mas não: Primo Levi se mostra desencantado, pessimista, não há solução, o natural, o devir, isso é o que sempre vence – isto é algo que de fato me faz criar uma relação com Schopenhauer e a vontade: não é possível deixar de querer, mas apenas suplantando o querer se acaba com o sofrimento. Primo Levi, por outro lado, mostra que o querer é ainda superior ao humano, e que as consequências desse querer são ainda superiores a qualquer potência humana. Daí a necessidade de se colocar como Damiano Malabaila, uma pessoa sem responsabilidade de ser o arauto memorialístico de qualquer terror a não ser os que ele irá encontrar de agora em diante, e que relatará em seus contos.
É importante também se ler com contexto: o livro foi escrito na década de 60, auge da Guerra Fria e um momento em que o mundo vivenciou ameaças aterradoras: a guerra mundial entre potências, as descobertas tecnológicas, as armas atômicas, a planificação das sociedades, globalização, possibilidade de desastres ecológicos definitivos, etc.
Destacarei aqui os contos que mais gosto em “Histórias Naturais”:
“Borboleta Angélica”: uma ficção que retrata de forma obscura os experimentos da segunda Guerra Mundial, no qual as tentativas de criar seres humanos “superiores” são cotidianamente testemunhadas por uma jovem garota. A teoria exposta nesse conto é maravilhosa, tanto pela criatividade quanto pela carga erudita. O conto em si vale pelo livro todo.
“Versamina”: junto com um outro conto de “Vício de Forma” (“Rumo ao Ociente”), forma uma das maiores obras de ficção que já vi. Trata-se do diálogo investigativo de dois pesquisadores amigos que buscam uma resposta clara do porquê de outro colega ter se submetido à experimentação de uma nova droga que “transforma toda e qualquer dor em prazer” (genial!). O colega morre como consequência do uso da droga (que acaba por fazer com que toda e qualquer dor, física ou psicológica, cause prazer, levando à autodestruição). O desfecho é algo justo de uma tese moderna sobre drogas como Prozac.
“Quaestio de Centauris”: “Questão sobre os centauros” é um conto de uma beleza estética surpreendente que trata da história de um rapaz que cuida escondido, com conhecimento apenas da família e de alguns amigos, de um centauro numa fazenda no interior da Itália. O conto busca retratar a origem e a história dos centauros, figura mítica, e trazê-la para o presente. No final, trata-se de uma história romântica e trágica.