Ricardo Rocha 11/03/2011
O mundo a qualquer preço
Aposento gótico, altamente abobadado. Uma porta ao fundo, e janela à direita. Entre um fogão, que fica à esquerda, arredado da parede, e o primeiro plano, uma porta que deita para um corredor. É noite.
Por uma fresta ao alto côa o luar. Estantes. Alfarrábios volumosos. Pergaminhos. Máquinas. Retortas. Vidros. Esqueletos, etc.; tudo em grande confusão. Desassossegado, sentado numa poltrona de sola e pregaria de cobre, com a cabeça fincada nas mãos, e os cotovelos na mesa de estudo, na qual derrama luz frouxa um candeeiro aceso, Fausto se reconhece ignorante apesar de todo seu estudo. Chamam-no de mestre e doutor mas não sabe nada. Confesso que uma peça em versos não é propriamente minha idéia de leitura agradável, mas Goethe escreve muito e o que diz soa muito atual, quase pessoal. Sabe ele mais que aquele “bando de ignorantes” que são as pessoas e todavia o que lucrou com isso senão a mesma vaidade com que estão inchados? Encontrou o prazer ou a felicidade?
De resto, é isso: um homem culto ao extremo, vende a alma ao diabo. Por 24 anos leva sem envelhecimento a vida mais desregrada. Vencido o prazo, o demônio o leva para os infernos. Numa passagem inesquecível de duas palavras Mefistófeles diz (sobre Margarida) “Sentenciada”, a que os anjos respondem “Salva!”. Pode significar que sempre é tempo desde que não tenhamos chegado a medidas extremas em nome de desfrutar o mundo a qualquer preço.
No diálogo preliminar começam a ficar expostos os desejos de cada um. Satisfazer a posteridade, gente invisível e portanto inexistente, com uma arte elevada? Não. Mas as pessoas que por aí andam ansiosas de novidades e demonstram claras inclinações. Quero agradar ao público, e preciso, que o público é real, e eu vivo dele. Não anda o povo afeito a mãos de mestre, mas lê, lê muito; um ler que mete medo. Que é “posteridade”, ou que te importa? Não trate eu de agradar aos com quem vivo. Goethe sabia bem do que estava falando, pois ele mesmo renunciara qualquer coisa relativa ao sublime – alcançado havia pouco tempo com os Sofrimentos do jovem Werther para depois sucumbir à glória imediata dos poderosos ao aceitar um cargo ridículo mas bem pago na corte de Weimar, essa que hoje pode ser comparada ao “mercado” literário e seus modismos.