Luísa Coquemala 06/03/2021
"Presos no inferno materialista dialético"
A história é conhecida: um dos revolucionários mais importantes de todos os tempos, Liev Davidovitch Trótski, foi assassinado em 1940, no México. Seu assassino, o espanhol Ramón Mercader, golpeou o russo no crânio com uma picareta. Trótski morreu um dia depois do atentado e Ramón foi preso pela polícia mexicana. Depois de vinte anos preso, sem admitir sua verdadeira identidade nem as razões pelas quais cometera o crime, Ramón se mudou para Moscou e foi condecorado com a estrela de heroísmo da União Soviética pelo crime cometido.
Todos esses fatos podem ser facilmente encontrados com uma busca sobre Trótski ou Mercader no Google. É por isso que eu, quando deparei com o romance de Padura, fiz uma cara de quem olha um bom tempo para uma comida antes de decidir se vai comê-la. Valeria a pena enfrentar um calhamaço de mais de 600 páginas para ler uma história que, basicamente, eu já sabia? Depois de muitos anos com o livro me olhando da prateleira (ganhei ele em 2014, mas só o li no final de 2020 ), resolvi dar uma chance e descobri que sim, sem sombra de dúvida, é um livro que vale muito a pena. Mesmo que já conheçamos o desenrolar dos principais fatos do romance. Isso acontece porque, aqui, mais do que quem cometeu o assassinato em si, importam o como e o porquê de tudo ter sido como foi. Em outras palavras: diferentemente de um romance policial tradicional, como em Agatha Christie ou Conan Doyle, onde as principais perguntas que se colocam são ?quem matou?? e ?qual foi o método que essa pessoa usou para matar??, Padura está mais preocupado em entender os caminhos e motivos políticos e sociais que permitiram a concretização de um dos crimes mais famosos da história.
Por conta disso, sabemos que Mercader é o assassino desde o início do romance e o foco da narrativa se alterna entre a história do assassinado (Trótski) e a do assassino (Ramón). De cara, encontramos o ainda jovem Ramón no meio da Guerra Civil Espanhola e o já exilado Trótski na Sibéria, rumo a Turquia. Padura, entretanto, acrescenta um outro elemento ao enredo: no ano de 2004, quem narra tudo é Iván, cubano nascido em 1950 e que, um dia, conhece na praia um misterioso homem ? com seus dois cachorros, sempre importante frisar ? que lhe relata a história do assassinato.
Apesar de o foco narrativo da história se alterar constantemente entre os três personagens, o relato de Iván é fruto de uma espécie de narrativa secundária (o narrador conta uma história que lhe fora anteriormente contada) que passa por traumas e lembranças longínquas não tão afetivas. Eis um ponto importante: a narrativa de Iván não se propõe a ser neutra (e, afinal de contas, existe algo realmente neutro?). Iván está, com razão, puto , revoltado e frustrado. Mais do que um narrador não confiável, Iván é um narrador declaradamente inconformado. Além disso, ele não tem problemas em admitir que escreve a história depois de muito tempo ? o que, claro, pode ter alterado os fatos em sua mente ao longo dos anos e dos traumas. Ele mesmo esclarece: ?o que estão lendo é a reconstrução, de acordo com minhas lembranças e a partir da perspectiva maléfica do tempo, de algumas conversas e pensamentos que só começaria a anotar, em forma de apontamentos, cinco anos depois daqueles encontros na praia, em 1977.?
Quando li essas linhas, confesso que já estava conquistada pelo estilo direto e cínico de Iván, que me fez rir e chorar numa distância de poucos parágrafos. As linhas acima citadas, entretanto, foram as que me fizeram sentir como quando me deparei com os famosos papeis em árabe que narram parte da história de Dom Quixote e Sancho Pança. É como aquela propaganda que eu via na televisão quando era bem nova, em algum canal infantil: ?um amigo de um amigo de um amigo meu me contou...?. Por um lado, se tantos amigos tinham passado a história para frente, era certamente porque ela merecia ser ouvida; por outro lado, ela poderia ter sofrido alterações à medida em que ia sendo passada para frente. Não importava. Eu sempre me acomodava melhor no sofá para ouvir a história que tinha passado por tanta gente e tinha, finalmente, chegado a mim. Tinha um pedaço de experiência de vida ali. Quando Iván faz a declaração acima, o leitor já está suficientemente empolgado com as histórias de Trótski, Ramón e do próprio narrador. Tarde demais para se importar com o que não é neutro. Hora de se acomodar melhor.
Optando por essas escolhas, Padura não se propõe simplesmente a entregar uma história que todos poderiam acessar em um verbete da Wikipédia. Eu diria que ele molha o biscoitinho do enredo de suspense num chá rico em subjetividade e material histórico. A maneira como Iván escreve a narrativa pode incomodar alguns, mas penso que a própria História não é neutra e está sujeita a uma guerra de narrativas e pontos de vista (dou um exemplo: para mim, o que aconteceu no Brasil em 64 foi um golpe; outros, entretanto, o chamam de revolução não por uma atenção especial a nomenclaturas, mas sim porque esse termo é o que sustenta a narrativa política que defendem). Pode ser que todos saibamos sobre o assassinato de Trótski no México por um stalinista fanático, ou dos abusos e atrocidades cometidas por Stalin. O que eu nunca tinha visto, entretanto (e aí está a grande sacada), é essa história sob a ótica de um cubano que cresceu majoritariamente sob o regime de Fidel Castro - apesar de o nome de Fidel não ser citado uma única vez, a parte cubana do romance se passa na Cuba de Fidel, que compartilhava acordos econômicos e laços ideológicos claros com a União Soviética. De cara, me pareceu uma narrativa honesta justamente porque enviesada, porque contada por um homem que, desesperançado, questiona o regime que lhe prometera muito e lhe entregou fome, pobreza e censura. Eu não consigo conceber nada mais próximo da vida real do que a comoção e o desespero das palavras de Iván.
Ademais, como estamos falando de um assassinato essencialmente político e de um cubano reavaliando os frutos que a revolução trouxe ao país, Padura traz uma série de elementos políticos para o enredo, uma miríade de informações pinceladas por um olhar crítico: há a explicação das ideias centrais do marxismo trotskista (um viés mais democrático, a revolução permanente); o relato da censura, formulação de mentiras, campos de concentração e confissões forçadas que ocorriam no regime de Stalin; a ênfase no pacto cínico que o governo soviético fez com o governo de Hitler às vésperas da Segunda Guerra Mundial, permitindo que o nazismo avançasse e ganhasse mais terreno; as contradições do próprio Trótski (como ele ajudou a destruir parte da democracia quando foi comandante do Exército na Rússia pós revolução e o preço altíssimo que sua família e amigos pagaram simplesmente por serem família e amigos); e, claro, as contradições da Rússia pós revolução e da criação de uma classe dirigente privilegiada, que vivia abundantemente enquanto grande parte da população sofria de fome e frio. A maneira como os eventos históricos são retratados levam a reflexões interessantes e desafiadoras, como a seguinte: ?[Trótski] Sabia que, se em março de 1921 os bolcheviques tivessem permitido eleições livres, provavelmente tivessem perdido o poder. A teoria marxista, que Lenin e ele utilizavam para avaliar todas as suas decisões, nunca considerara a circunstâncias de os comunistas, uma vez no poder, perderem o apoio dos trabalhadores.?
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Dostoiévski vai a Cuba
Muitas vezes, ao longo da leitura de O homem que amava os cachorros, me peguei pensando em Dostoiévski. Primeiramente, por uma razão mais óbvia: a maneira peculiar como Dostoiévski trabalha os assassinatos em seus romances. Em Crime e castigo, por exemplo, já conhecemos o assassino Raskólnikov nas primeiras linhas (uma quebra de expectativa para quem espera um romance de suspense tradicional). A questão não é a identidade do assassino, mas quais são suas motivações e como o chefe de polícia chega até Raskólnikov. A resposta, aqui, é política e ideológica: Raskólnikov não se conforma com sua miséria e falta de oportunidades e, tomado por arroubos napoleônicos, se sente no direito de matar uma velha de quem ninguém aparentava gostar. Não por acaso, o chefe de polícia, entre a ausência de evidências, consegue se guiar por meio de um artigo de jornal que só alguém que cometera um crime como aquele poderia ter escrito. Nada de finais com revelações teatrais, dedos apontados para mordomos e palavras de ordem.
Encontramos movimentos semelhantes no romance de Padura. Por se tratar de um crime cujas motivações eram sobretudo ideológicas e políticas, os motivos importam mais que a revelação do assassino. Assim como em Crime e Castigo, as perguntas que se colocam são: quais fatores sociais contribuem para a formação ideológica do culpado? Até que ponto as circunstâncias sociais e pessoais influenciam na tomada de decisão? Assim como as perguntas, as grandes revelações são de outra ordem e giram em torno da reflexão sobre a validade e real necessidade do crime, passando pela reavaliação e pelo arrependimento por parte daqueles que os cometeram. O arrependimento, no entanto, ultrapassa o âmbito pessoal e se configura em forma de questionamento da própria ideologia que levou ao crime. Em O homem que amava os cachorros, onde conhecemos o narrador em primeira mão, o questionamento da ideologia por parte de Ramón leva, naturalmente, ao questionamento do regime político que cerca o narrador Iván. Os diferentes focos narrativos de Trótski e Mercader estão indelevelmente marcados pelo inconformismo de Iván. Por isso, o relato do assassinato de Trótski é a válvula pela qual Iván consegue relatar sua própria tragédia pessoal.
Situando seu narrador na Cuba do começo do século XXI e tratando a história do assassinato com um foco sobretudo político e social, Padura estabelece um fio que conecta os três homens da história. Primeiramente, porque a história do crime está ligada às decepções diante do sonho utópico (para Ramón, o stalinismo; para Trótski, os caminhos imprevistos da Revolução Russa; para Iván, os ideais da revolução cubana). Além disso, o assassinato funciona como constante lembrete de que os acontecimentos históricos não são fatos isolados, mas influenciam o presente. Desse modo, Iván não só conta o assassinato, mas, ao fazê-lo, encontra o fio que passa pelo assassinato e chega à política de seu país, chega à sua própria experiência de vida, escancara como determinadas configurações históricas podem influenciar a vida das pessoas, seja quando elas passam fome, sejam quando se deparam inesperadamente com o amor ? e a maneira como Iván coloca essa questão soa até mesmo como a tragicidade no sentido grego clássico, como um destino inescapável onde a configuração político-social age como um deus bravo.
Há, entretanto, um outro ponto de contato entre os três homens e que me remete a Dostoiévski. Sempre que leio um romance do russo, sinto uma compaixão incômoda por algumas de seus personagens ? geralmente aquelas que desejam cometer atos ruins. Sim, elas são controversas e erram constantemente. Contudo, elas não conseguem ser tão ruins como gostariam de ser. Raskólnikov planeja matar a velha usurária e Dmitri gostaria muito que seu pai morresse, mas nenhum deles estava contando com sua consciência. Isso não faz deles fracos. Sua contradição, penso, é o que dá a eles sua humanidade e revela sentimentos com os quais todos nos conectamos.
Através das palavras de Iván, senti essa mesma compaixão por Ramón e Trótski. Acredito que ambos pensavam ser mais frios do que realmente eram ? aliás, o título de mau do romance fica com Stalin, que não aparece nenhum momento em cena e não tem sua subjetividade representada. Ramón acreditava ser um revolucionário impiedoso, sem sentimentos. Trótski acreditava que seria capaz de colocar seus ideais revolucionários acima de qualquer outra coisa, sem titubear. Assim, Ramón assassina Trótski e manipula Sylvia; Trótski manda matar muitas pessoas quando comandante do Exército Vermelho e arrasta sua família para o sofrimento que a perseguição política engendra. Mas nenhum deles é impassível diante da dor dos outros.
Poderíamos ir além e dizer que a causa primeira de todos seus atos não é outra senão o amor. Em primeira instância, Ramón topa participar de qualquer negócio para impressionar África , por quem é apaixonado. Trótski, apesar de todas as controvérsias, tem um amor honesto pela causa e pelas pessoas que a representam, mesmo que sejam seguidoras de seu algoz. É a í que acaba a paz de Iván. Ele escuta o misterioso homem da praia, pesquisa os cantos mais obscuros do assassinato e, quando menos espera, está sentindo compaixão pela vítima e o algoz. Até mesmo Ramón se vê comovido diante de Trótski, forçando-se a sentir um ódio que futuramente daria lugar ao arrependimento: ?Ramón recusou-se a ouvir, tentando se concentrar em seu ódio e na nuca do velho, mas admirou-se ao descobrir que o rondava um sentimento ambíguo de compreensão?.
Compaixão, o mote do livro, a palavra que fecha o romance. Lembro exatamente o dia que entendi Iván. Estava sentada no degrau do quintal, no sol fresco das 8 da manhã enquanto tomava meu café, e me peguei pensando em Ramón e Trótski, em tudo que sofreram. Eu estava realmente triste por eles, genuinamente chateada ao pensar em pessoas que eu poderia tão facilmente odiar. Mas, como podia eu estar penalizada por homens como aqueles? E então eu entendi a revolta de Iván ao notar que compartilhávamos da mesma compaixão indignada. E é o tipo de sentimento que, quanto mais desconfortável, mais humano. Raskólnikov sorri de sua cela.
Ao humanizar essas figuras, Padura nos alerta que pessoas comuns podem ser levadas a cometer atos horríveis por simplesmente acreditarem que esse é seu dever. A compaixão de Iván é a compreensão de que o algoz e a vítima são homens comuns como ele, não grandes gênios do mal. Sobre Ramón, por exemplo, ele mesmo deduz: ?Mercader foi vítima e carrasco, tal como a maioria. (...) Ele não andava por aí matando pessoas... Foi um soldado que cumpriu ordens. Fez o que lhe mandaram por conveniência e convicção.? É uma percepção difícil, e implica entender que o mal pode vir dos lugares mais elementares.
A peça-chave neste livro é entender que o grande X da questão é saber, afinal de contas, quem é o homem que amava os cachorros anunciado no título. Teoricamente, seria o homem misterioso que caminha na praia com seus dois borzóis e relata tudo a Iván. Teoricamente. Contudo, Iván, Trótski e Ramón têm uma coisa em comum: todos amam cachorros, e cachorros são o grande elemento que faz com que criem laços sinceros com outras pessoas. Nessa história, não existe apenas um homem que ama cachorros, não há um grande culpado. Aí está o enigma da compaixão revoltante que Iván sente, acho que é isso que ele entende depois de ouvir a história toda: o homem que ama os cachorros é o homem da praia, é Ramón, é Trótski, é Orwell... é Iván. Podemos ir além: na verdade, talvez sequer importe quem é o homem que ama os cachorros quando qualquer um pode ser o homem que ama os cachorros, quando basta estar vivo para poder amar um cachorro.
E amar um cachorro, como afirmou Breton a Trótski, pode ser atribuir sentimentos e percepções humanas aos animais. Diz mais sobre nós do que sobre eles. Logo, os três homens deste romance, tão controversos e errantes, talvez amem tanto os cachorros porque sabem que se trata de um ser que consegue dar um amor genuíno, independentemente do tipo de erro que seus donos cometeram no passado e da ideologia que carregam. É mais ou menos por aí a ideia de compaixão que implica em amar e se deixar amar por um cachorro: o amor de um cachorro é a compaixão inevitável que eu sinto quando consigo enxergar o outro como ser humano. É essa compaixão que o governo desumano de Stalin negava, essa compaixão que o desejo de fé cega pela ideologia nega. E, a partir do momento em que eu sinto um pouco de compaixão, também consigo reconhecer que, de certa forma, me conecto com suas histórias e suas dores e que estamos todos ligados, ?como astros cujas órbitas estão destinadas a se cruzar e provocar uma explosão.?