Alê | @alexandrejjr 06/07/2021
Uma cicatriz brasileira
A violência é uma chaga com a qual os brasileiros vivem e convivem cotidianamente. Ela se tornou tão natural a ponto de criar uma espécie de anestesia moral diante dos nossos olhos. Para a grande maioria, a crueldade não choca. Para uma importante minoria, essa é uma realidade que deveria pertencer apenas à ficção.
O livro “Estação Carandiru”, lançado pelo médico oncologista Drauzio Varella em 1999, é um trabalho que parte da minoria citada no primeiro parágrafo. É por um sentimento de indignação, mas além disso, de dever, que Drauzio traz à luz, como poucas obras nacionais de não ficção já fizeram, uma realidade esquecida, ignorada por quem prefere ficar calado diante daquilo que despreza.
Para falar de um espaço tão alarmante quanto a cadeia, é necessário o mínimo de base empírica. De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional, o Depen, o Brasil tinha no primeiro semestre de 2020 um total de 678.506 presos, o que lhe concedeu a terceira posição no ranking da população carcerária mundial. É desesperador. Os dados mostram que, diferente do que pensam os “cidadãos de bem” que proliferam as mentiras que afundam o país numa espiral de ignorância, a maioria desses presos cometeu crimes envolvendo tráfico de drogas, entre taxas que variam de 35% a 40%. Portanto, não, a maioria dos presos no país não são estupradores e assassinos em série - o que, infelizmente, não impede que a malandragem envolvida com drogas não tenha cometido tais crimes. Sigamos.
Em “Estação Carandiru”, Drauzio aborda a mazela da desumanidade, essa que aflige a quem a sociedade elege e julga como escória. Todos sabemos que as prisões brasileiras não servem e nunca irão servir para ressocializar quaisquer presos. Elas existem, como herança escravocrata, para apenas um propósito: separar os indesejáveis. E nesse universo particular vive mais um dos tantos “Brasis” que temos. A cadeia possui códigos morais invioláveis com penas capitais. E é aí que entra o olhar humano, alheio à anormalidade do cárcere, do médico voluntário que vai trabalhar para diminuir os casos da epidemia de aids que assolava o então maior presídio da América Latina, a Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru. Em meio a traficantes, assaltantes e estupradores, Drauzio descobre como a vida é constituída de infinitas possibilidades. Afinal, como é possível viver - ou melhor, sobreviver - em um ambiente infestado de doenças, ratos e baratas e onde a morte é a saída menos indolor para enfrentar a passagem do tempo? Uma resposta possível está neste livro.
Em meio às histórias cômicas coletadas pelo médico, contadas com uma prosa elegante e instigante, os leitores se deparam com personagens tão reais e palpáveis que parecem furtados ironicamente da ficção, da imaginação de uma mente criativa. No entanto, é a realidade que torna o livro indispensável para qualquer um que julgue ter um pensamento humanista, pois é o lugar inimaginável do outro - do preso, do criminoso, do pária social - que Drauzio apresenta, não deixando morrer na memória coletiva essa cicatriz que a sociedade brasileira não consegue curar.
Adaptado em 2003 para o cinema pelas mãos habilidosas de Fernando Bonassi, Victor Navas e Hector Babenco, este último também diretor, o filme “Carandiru” dá uma boa noção da grandeza do livro. Antes de ser leitor das histórias da Casa de Detenção, fui espectador. Inúmeras vezes. E fico feliz de ter visto e lido sobre o universo das prisões brasileiras, pois assim posso lembrar que meus olhos não percebem a pequenez do meu mundo.