Marina 16/02/2021Ler nas entrelinhasEsse livro NÃO deve ser lido como um livro erótico.
Até estremeço lendo as resenhas que tratam esse livro como um filme pornô. Ele não é um filme pornô, ele é uma narrativa honesta e brutal de uma vida marcada por aspectos extremamente duros do machismo e do consumismo.
A autora conta que enquanto criança tinha uma autoestima muito baixa: tinha sido adotada, era gorda, nunca foi boa no colégio. Desde pequena se sente desajustada, começa a desenvolver o hábito de roubar balas ou moedas.
Conforme ela vai crescendo, a curiosidade, o desejo de experimentar coisas novas e a coragem (atributos que seriam valorizados num menino) a levam a ter suas primeiras experiências sexuais, mas como não quer perder a virgindade sempre inventa uma desculpa para ir embora.
A falta de amor próprio é latente na narrativa da sua formação. Isso a leva a se submeter a muitas experiências que ela não quer. ?Não resisti. Ele estava dando em cima de mim. Da Raquel, da gordinha.?
Em um momento, está fora da escola beijando um menino do seu colégio quando ele insiste em que ela faça sexo oral com ele. Ela diz que não pode, tenta sair, fala que vai encontrar os pais, mas ele não a deixa sair. ?Daqui você não escapa, pelo menos você vai fazer um oral pra mim. Não tive escolha.?
No dia seguinte, a escola inteira estava sabendo. Ela ganhou a fama de puta. Perdeu todos os amigos e ficou sozinha.
Mudou de escola. Não adiantou, a reputação de puta chegou na nova escola também. Ela se sentia diminuída, se tornou bulímica e deprimida. Tentou se matar mais de uma vez. Continuou roubando e se tornou cada vez mais viciada em consumir.
O momento mais grave foi quando vendeu uma joia de sua mãe. Ali, ela perdeu a base que ainda tinha, da família. Foi humilhada reiteradamente, desprezada e ignorada. Tentaram mandar ela para FEBEM, mas ela acabou não indo. Pouco depois foi embora de casa vendo a prostituição como única saída que lhe permitira ?manter o estilo de vida?.
O isolamento, o estigma advindo da fama de puta por um ato que ela sequer queria realizar, a crença na sociedade de consumo e a ausência de outros sonhos levaram Raquel a buscar uma alternativa que lhe garantisse ?liberdade?.
Ocorre que a liberdade que existe para as mulheres é sempre restrita. Se por um lado ela consegue se sustentar sem depender dos pais que a humilharam, por outro ela precisa vender a si mesma, e aí também ela vive muitos momentos de dor e humilhação. ?Se não fosse garota de programa, no mínimo me sentiria vítima de estupro. Mas, como era, me senti um lixo.?
A narrativa escancara uma sociedade doente, na qual inúmeros homens buscam a prostituição ao longo de toda a vida, desde os meninos de 12 anos que iam perder a virgindade com uniforme de escola até os pais de família que mantém uma vida dupla e muitas vezes aceita. O sexo como produto de uma sociedade de consumo, os tabus e a repressão que apenas marginalizam ainda mais.
Raquel Pacheco tem uma narrativa mais revolucionária e potente do que ela acredita ter, mas tenta torná-la mais palatável e divertida ao encher a narrativa de histórias e tabus sexuais que viveu na sua vida como prostituta.
Isso fica claro quando ela conta do surgimento do blog que a tornou conhecida. A princípio, ela tinha escrito um texto sobre sua vida, dores e arrependimentos, ?só queria que alguém me ouvisse?, mas apagou. ?Iam achar que além de puta eu era louca.?
No lugar disso, optou por escrever pequenas crônicas com um tom cômico sobre o seu dia a dia enquanto prostituta de luxo.
No livro ela mistura as duas coisas. Ela conseguiu dizer o que precisava, mas será que conseguiu ser ouvida?