spoiler visualizarNatalia 19/04/2020
Desmedida leveza
"(...) me achava gorda, feia, era adotada, tinha um monte de problemas com meu pai. Quando cheguei aos 16 anos, depois da cagada no Bandeirantes [ter chupado um menino da escola] e de a história ter me perseguido também no Imaculada, me vi, não bastasse tudo isso, sem amigos. A situação chegou em um ponto do qual não via saída. Planejei me matar."
Um ano depois, essa menina sai de casa para se tornar prostituta. Aos 17, sem o segundo grau completo, negada pelos pais após praticar diversos furtos em sua própria casa e sem um teto, era a alternativa. Ao longo dos anos, se prostituiu no "Vintão", por 20 reais cada programa, realizou múltiplos programas diários e teve uma overdose de cocaína. Ainda assim, escreve um livro em um tom de blog, com uma leveza extrema que ninguém consegue entender de onde vem, como quem está falando de amenidades em uma mesa de bar e não dos traumas de uma vida.
O tom é tão cru que chega a parecer que o livro tratará de contos eróticos; mas menos valorizada pela própria autora que o sexo é a vida dela como Bruna Surfistinha -- e a Raquel que ela deixou para trás para tornar-se garota de programa. Assim, existem duas abordagens para essa leitura: a primeira, superficial, é ler para saber das aventuras de uma prostituta, seus programas e clientes, o que ela sentia durante as inúmeras transas descritas; a segunda é ler com senso crítico e buscar entender um pouco mais sobre essa mulher. Se escolher esta última, prepare-se: assusta.
Assusta quando a leitura dá a entender que o que arrasaria o psicológico de qualquer mulher, para ela, fez apenas cócegas. Isso, porém, não é verdade: "fingia para mim mesma não sentir. Ele passava a mão em mim. Não gostei. Até hoje, às vezes, tenho nojo de ver uma mão fazendo carinho no meu corpo."/"Nunca pensei na vida em pegar um cara assim. No entanto, ele me pegou - e me pagou. Para dizer não, teria de pagar à casa o que o cliente pagaria pelo programa. Esse era o acordo. Fiz minhas contas: para ganhar cem reais, tinha que fazer três programas. Ser escolhida, e não escolher. Não é à toa que tanta garota de programa cheira cocaína e puxa muita maconha. Senti isso na pele. Cheirando e fumando.". Transparecem mágoas em meio a tantas futilidades, mesmo que em um baixo volume.
Motivos para essa abordagem na escrita? É possível que a editora que publicou tenha retirado parte da profundidade da escrita para que o livro vendesse mais -- afinal, o interesse em um livro de uma prostituta deve ser motivado apenas pelo sexo [sarcasmo]. É preciso levar em consideração que a autora deixa transparecer, por diversas vezes, a intenção de convencer os pais de que "está bem" e que a prostituição foi um momento de sua vida, necessário, porém que se findou. Há um anseio de se sentir aceita, não só pelos pais, mas por todos ao seu redor, inclusive seus clientes. Sua autoestima é perigosamente baixa e, durante a prosa, ela recorre à autoafirmação. Acima de tudo, essa é uma mulher que entrou numa indústria de exploração sexual aos 17 anos, antes mesmo de adquirir maturidade nesse quesito. Sua inserção precoce em um contexto no qual toda a sua vida gira em torno do sexo, na grande maioria das vezes indesejado (porém com necessidade de submissão para o seu sustento -- estupro pago), certamente teve um impacto gigantesco nas suas formas de falar, se relacionar e, arrisco dizer, pensar.
A autora buscou lidar com o seu cotidiano, através do seu blog, como se sua vida fosse um show. Talvez, dessa forma, não tenha sentido doer as suas feridas abertas. Essa fuga também se deu com as drogas. Apesar disso, é importante reconhecer que Raquel é uma mulher forte. Sua realidade não era nada palatável, era de abuso. Escrever sobre sua vida como prostituta, mesmo que da forma superficial que descrevo aqui, exige muita coragem. Ela mantém sonhos, como o de se tornar psicóloga. Mantém também esperanças de retomar o contato com seus familiares, guardando uma foto de sua sobrinha na sua agenda. Querer casar e ser mãe, de gêmeos. "Da mesma forma que entrei nessa, sei que vou sair. Não quero ser puta o resto da vida. Trabalho para isso.".
É extremamente triste que vivamos em uma sociedade na qual as mulheres precisem recorrer à venda dos seus corpos como opção de sustento, para custear seus sonhos ou para se libertar de abusos familiares. É violento que essa seja uma opção. Se esse livro for encarado como um livro leve, lido para diversão ou por fetiches, pode passar a ideia errada de que a prostituição é um trabalho como outro qualquer. E não é. A exploração sexual feminina é uma violência de gênero. Deve-se desvincular toda e qualquer ideia de "glamour" ou "vida fácil" dessa temática. Deve-se reconhecer a violência física, sexual e psicológica a cada passo que Raquel deu como Bruna.
"Dizem que a escravidão desapareceu da civilização europeia: é um erro. Existe ainda, mas não pesa senão sobre a mulher, e chama-se prostituição" (Victor Hugo, 1862). Mais de um século e meio depois, aqui estamos. Deveríamos? Conseguiremos mudar?