Fernando Lúcio 11/12/2017
NUNCA JULGUE UM LIVRO PELA CAPA…
A capa e o título chamam a atenção de quem tem gosta de “viajar” no mundo da leitura, especialmente da leitura de livros de/sobre literaturas, o conteúdo, sinceramente, nem tanto. Minha avaliação seca vem de uma expectativa (criada em mim pela capa) que não foi totalmente atendida: eu esperava que o livro oferecesse ferramentas práticas e farta exemplificação sobre como utilizar em sala de aula as diversas leituras que os alunos (re)criam a partir da literatura a que têm acesso.
O livro é uma coletânea de artigos e ensaios sobre o ensino da literatura, publicada no francês em 2004, cuja primeira edição em português foi lançada em 2013, pela editora Alameda, organizada por Annie Rouxel (Professora Emérita – titulação máxima – da Universidade de Bordeaux), Gerard Langlade (Professor da Universidade de Toulouse, na França) e Neide Luzia de Rezende (esta foi quem teve a iniciativa de tornar a obra acessível ao público brasileiro). A coletânea surgiu na França como resultado das discussões promovidas no âmbito do colóquio “Sujeitos leitores e ensino de literatura”, ocorrido na cidade de Rennes, como desdobramento das discussões promovidas por Annie em seu artigo “Mutações epistemológicas e o ensino de literatura.: o advento do sujeito leitor”, de 2004. As 210 páginas do livro são bastante densas em termos de teoria, com muita influência da Análise do Discurso de linha francesa e da Escola de Frankfurt, um enorme hipertexto com dúzias de referências sobre outros autores, a exemplo de Sigmund Freud, Roland Barthes, Gustave Flaubert, Marcel Proust, Pierre Bayard, Michel Certau, Pierre Dumayet, Marthe Robert (estes dois referenciados várias vezes), entre tantos outros.
Nos textos, os autores problematizam, sob variados pontos de vista, o ensino de literatura no mundo contemporâneo. Se uma aproximação entre a subjetividade do leitor e a leitura já teria sido realizada em outras áreas, a exemplo da Educação, por que o ensino de literatura não poderia fazer o mesmo? Partindo de questões como essa, implícitas nas críticas feitas ao longo da obra, o livro apresenta a situação do ensino e das práticas de leitura (ou a ausência/ineficiência delas) no cenário da Educação Brasileira, na visão de Neide Luzia de Rezende, com críticas à não aplicação de diretrizes já válidas desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei 9394 de 1996), a má formação dos profissionais e o consequente ensino de literatura distanciado da leitura e da inserção das experiências particulares de leitura experimentadas pelos jovens hoje. Ela pontua, ainda, o previsível trabalho com clássicos da literatura, como o Dom Casmurro, sem conexão com as novas tendências e anseios dos leitores, algo que acaba por afastá-los dos clássicos e impulsioná-los em direção a livros de linguagem mais simples e acessível, como os best-sellers dos últimos anos. Rouxel e Langlade trazem à tona questões discutidas no já referido Colóquio de Rennes, tais como o ensino e a leitura focados no leitor (influência da Teoria da Recepção, algo que permeia/conduz toda a obra), a produção de sentidos e o papel do leitor nesse processo, entre outros tópicos relevantes.
A partir de então, como sugeri inicialmente, a leitura se torna monótona, arrastada, cíclica, repleta de termos sinônimos de outros termos, chata mesmo. O único ponto positivo que destaco são os exemplos retirados de outros autores (como Dumayet e Robert), de experiências de subjetividade durante a leitura de algum texto, que nos dão uma dimensão prática, imagética do que os autores estão querendo dizer. Por exemplo, no capítulo “O Sujeito Leitor, Autor da Singularidade da Obra”, Langlade fala como Dumayet associava o andar de Madame Bovary e o deslizar da fita de sua roupa no chão, com os movimentos de uma serpente que viu quando era criança. Adiante, são confrontados, no capítulo assinado por Catherine Tauveron, os “direitos do texto” (o que o texto diz de fato e o que não diz) e os “direitos do leitor” (como ele recebe o texto, suas interpretações pessoais, sua subjetividade). Outro momento importante do livro é o capítulo de Annie Rouxel, “A tensão entre utilizar e interpretar na recepção de obras literárias em sala de aula: reflexão sobre uma inversão de valores ao longo da escolaridade”, muito baseado em Umberto Eco. A interpretação está relacionada aos “direitos do texto”, pressupõe uma comunidade de leitores, um acordo tácito, pactuado e é valida nesse contexto a literatura discutida na comunidade, pelo professor. A utilização relaciona-se com os “direitos do leitor”, é pessoal, subjetiva, ou seja, para cada leitor, o texto diz algo diferente (ou não diz nada).
Como disse, uma profusão de termos surge. Fala-se que o leitor produz um “texto singular”, preenche “espaços em branco”, “interstícios”, demonstra uma “iniciativa interpretativa”, um “ponto de vista subjetivo”, uma “produção silenciosa”, “significação induzida”, “astúcia do prazer”, “invenção da memória”, o leitor realiza uma “caça furtiva” em relação à “presa” que é o texto, apoderando-se dele secretamente e desrespeitando (ainda que em silêncio, quase de modo inconsciente) as regras tradicionais que direcionam a leitura, digamos, linear ou tradicional do texto literário. Ao fazer isso, o leitor pratica “atividades de complemento” por meio de uma “adesão viva” e um sem-número de outros termos. Tudo isso para dizer, a meu ver, que a leitura de textos literários é um processo tão vivo e rico como a escrita, com a participação ativa do leitor, e que suas possibilidades de exploração vão além do uso utilitário e rígido da interpretação textual baseada em gabaritos previamente fechados pela interpretação de alguém julgado um leitor hábil.
Sem dúvida que a problematização é boa e os textos foram cuidadosamente escolhidos por professores da USP, como a própria Neide Luzia de Rezende, que assina a organização. E daí? O único vislumbre do que poderia ser feito na prática para dar foco maior à utilização do texto e não de sua interpretação me veio quando li o capítulo sobre interpretar x utilizar. No mais, reafirmo: muita teoria, muitos termos bonitinhos emprestados do francês e pouca aplicabilidade. A maior crítica que se pode fazer a esse livro é que, após lê-lo, você continua com a sensação de que aprendeu muita coisa, mas não tem ideia de como relacionar todo esse volume de informações ao dia a dia de uma escola. Quer dizer, é uma leitura que critica, mas, ela mesma não considera a “iniciativa interpretativa” do leitor. Se vale a pena ler o livro? Depende. Quer enriquecer seu vocabulário crítico, vá em frente. Agora, se quiser ensinar literatura, talvez seja melhor não ir tão longe (até a França) e ficar no Brasil mesmo.
REFERÊNCIAS
ROUXEL, Annie; LANGLADE, Gèrard & REZENDE, Neide Luzia (org) Leitura subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda, 2013.
ROUXEL, Annie. Mutações epistemológicas e o ensino de literatura.: o advento do sujeito leitor. Tradução de Samira Murad. Revista Criação e Crítica, n.9, pp.13-24, nov.2012. Disponível em . Acesso em 11 de dezembro de 2017.