Ana Sá 29/05/2023
Onde está o pedaço de carne?
Um livro angustiante e violento. Mas é bom! Dolorosamente bem executada, esta é uma narrativa de muitas camadas. E o vegetarianismo é o que menos importa aqui.
"A vegetariana" (2007), da escritora sul-coreana Han Kang, é uma obra dividida em três partes, sendo que cada uma delas é narrada por um membro da família da protagonista. É através deles que temos acesso a relatos sobre a decisão repentina de Yeonghye de parar de comer carne. Não por ideologia, não por saúde, não pelo meio ambiente. Sua justificativa para jogar fora toda a proteína animal que havia na geladeira são seus sonhos. "Eu tive um sonho", repetirá a protagonista.
Logo no início da narrativa perceberemos que a atitude de Yeonghye está/estará associada, em alguma medida, com um distúrbio mental. E então ficamos por um tempo, ou talvez todo o tempo, tentando perceber se estamos diante de um terror psicológico ou de um terror fantástico, pois esse flerte com o universo onírico de Yeonghye torna a história bastante obscura. Soma-se a isso a ausência da voz da protagonista... Seriam a visão do marido, do cunhado, da irmã, versões confiáveis da tragédia que se inicia com a decisão de não comer mais carne? Aliás, o silêncio/silenciamento da protagonista pode nos levar a coloca em xeque o próprio título do livro. Afinal, ela pretende mesmo se afirmar como vegetariana ou este é apenas o rótulo que atribuem a ela? Por curiosidade, eu fiz uma busca no meu e-book antes de escrever a resenha e só me deparei com afirmações em terceira pessoa ("ela é vegetariana"). Da parte de Yeonghye, encontrei apenas falas de negação/recusa de comer carne, e nada do tipo "sou vegetariana". Coincidência? Eu acho que não...
Como eu disse, o livro é angustiante e violento. Yeonghye segue numa crescente de sentimentos e de atitudes perturbadores que se desenrolam concomitantemente às violências simbólicas e concretas que ela passa a sofrer desde que os sonhos (ou pesadelos) se iniciam. Sabe aquele tio do churrasco que não perde a chance de encher o saco ou de fazer piada com o parente que decidiu se tornar vegetariano? Então, aqui essa figura é levada ao extremo, servindo de metáfora para diversas opressões sofridas pelas mulheres. E é por isso que eu afirmei que o vegetarianismo neste livro é o que menos importa. O brilhantismo da autora está no retrato do patriarcado e da opressão feminina tecidos a partir do gesto de Yeonghye. Óbvio que pode ter no livro aspectos culturais que me escapam, mas "A vegetariana", a meu ver, revela-se uma narrativa universal ao ilustrar o terremoto que um "não" inesperado vindo da boca de uma mulher pode causar.
Optei por escrever uma resenha sem spoilers, então não vou detalhar por que gostei tanto dos três narradores. Posso dizer que achei genial o retrato dos dois narradores masculinos: o primeiro tira qualquer leitora do sério; o segundo também, mas este é acrescido de uma ambiguidade bastante interessante. De novo, não vejo coincidência no fato de de a única voz feminina, a da irmã, ser ouvida apenas no capítulo final. Foi daqueles livros que fechei e pensei: "esta autora sabe honrar a caneta e o papel, há um claro projeto de texto aqui!".
Cabe dizer que eu tenho ficado com um pé atrás com narrativas que retratam a mulher como "triste, louca ou má", sobretudo quando isso vem carregado de cenas de violência. E foi justamente aí que este livro me surpreendeu. Yeonghye está, em alguma medida, "louca", mas ela também foi "enlouquecida". Nada é gratuito; a obra é uma paulada, mas entendemos que cada ato tem o seu papel no todo.
Para quem, por causa do título, possa criar a expectativa de encontrar uma história sobre vegetarianismo, sugiro se questionar: "Onde está o pedaço de carne?". Ele está no lixo da casa de Yeonghye ou está/é a própria personagem, que parece nunca ser vista em sua essência? Qual corpo, afinal, é o corpo violado? O do animal ou o da mulher? - eu avisei que era um livro de muitas camadas, não avisei?
Em suma, este foi o inusitado caso da leitura que me obriga a dizer: "pesadíssimo, fiquei angustiada o tempo todo, terminei o livro mal... recomendo!".
Obs.: a meu ver, o final (apesar de igualmente pesado) é coerente e poético? Eu estava morrendo de vontade de falar sobre ele, mas, como gosto de vocês, optei por engolir os spoilers todos! rs