Manuella_3 10/09/2014
A Invenção das asas é um romance que comove, apaixona e aproxima o leitor do drama da escravidão. Fatos e personagens históricos são inseridos na ficção para recontar a história das irmãs Grimké, abolicionistas e feministas norte-americanas do século XIX. Lutando corajosamente pela liberdade dos escravos, as duas mulheres também empreenderam uma batalha contra a desigualdade de gênero.
Tendo como cenário a cidade de Charleston, no sul dos Estados Unidos, início do século XIX, a narrativa alterna os capítulos com as vozes de Sarah Grimké e Hetty ‘Encrenca’, respectivamente sinhazinha e escrava. Ao longo de mais de trinta anos acompanhamos a luta dessas mulheres, desde a infância, quando ‘Encrenca’ é dada para Sarah como presente de aniversário, para servir-lhe de companhia. A recusa de Sarah em apropriar-se da garota inicia a luta que travará até o fim de seus dias.
Sob a perspectiva de Sarah, a autora fala da eminente abolicionista que reivindicou mais que a libertação dos escravos: queria uma sociedade justa e a pacifica convivência entre brancos e negros, homens e mulheres. Ainda menina, horrorizada com as punições impostas aos escravos, demonstra claro interesse pela área jurídica, influenciada pelo pai (juiz conceituado), sonhando ser advogada. Coisa impossível para a época, quando as mulheres não tinham outro destino que não fosse um bom casamento, a criação dos filhos e os cuidados com a casa e a criadagem.
“Eu não sabia explicar à época como uma árvore mora dentro de sua semente ou como eu de repente soube que do mesmo modo enigmático algo vivia dentro de mim - a mulher que eu me tornaria -, mas eu parecia saber subitamente quem ela era.” (Sarah, p. 24)
Hetty ‘Encrenca’ - cuja alcunha é seu ‘nome de escrava’ - é uma personagem cativante, que transita entre a dor e a esperança. Ao lado da mãe, a escrava e exímia costureira Charlotte, alimenta o sonho da liberdade enquanto realiza pequenos atos de rebeldia, como escape e vingança contra as exigências e crueldades da Sinhá Mary Grimké.
“Minha mamã era esperta. Não aprendeu a ler e escrever como eu. Tudo que ela sabia vinha do pouco de misericórdia que ela encontrou na vida.” (Hetty 'Encrenca', p. 9)
Com a impossibilidade de emancipar a escrava e tendo-a como dama de companhia, Sarah decide tratá-la da melhor forma, como a uma amiga. Liberta-a, então, da ignorância: com os poucos livros a que tem acesso, ensina Hetty a ler e discutir ideias, contrariando a lei que proibia a alfabetização dos escravos. Até que a esperta ‘Encrenca’ é descoberta escrevendo e Sarah é castigada com a interdição da vasta biblioteca do pai, único interesse e passatempo da garota. Não poderia ser pior.
Enfrentando uma gagueira de origem emocional sempre que precisa impor sua opinião, Sarah decide incutir na irmã mais nova, Angelina (Nina), suas convicções sobre a libertação dos escravos. Juntas, Sarah e Nina combatem preconceitos, enfrentam seus pais, irmãos e a sociedade escravagista do Sul. Recusam casamentos que as fariam bem aceitas na sociedade - e o que era esperado das mulheres, obviamente. Seguem para o Norte dos EUA, onde encontram espaço para reivindicar suas posições políticas e sociais, auxiliadas pelos apoiadores das novas ideias abolicionistas. Sarah e Nina não desistem de suas lutas em favor do que pensam. Poderiam muito bem permanecer quietas e obedientes, mas encaram a ira da sociedade e a perseguição religiosa.
Sarah, Nina e Hetty ‘Encrenca’ batalham o quanto podem, cada vez mais rebeldes, cada uma à sua maneira. Sarah é mais polida e comedida e, ao longo do tempo, amadurece e fica mais segura para mudar o jogo. Nina é atrevida e impulsiva, fala o que vem à cabeça e recusa-se, terminantemente, a ser domada pelos costumes e regras da sociedade da época. À ‘Encrenca’ cabe lutar (em segredo e perigosamente) pelos sonhos que acalentou com a mãe: o de comprar sua liberdade ou fugir, em último caso.
“Havia tanto no mundo para ter e não ter.” ('Hetty' Encrenca, p. 37)
Unindo as pontas dos extremos, a autora insere o leitor numa visão privilegiada dos sentimentos, pensamentos e argumentos das protagonistas Sarah e Hetty ‘Encrenca’. Embora tenha uma vida abastada e cheia de facilidades, a sinhazinha é refém das escolhas que não fez. A certa altura, ‘Encrenca’ pressiona sua ‘dona’: “Eu sou presa pelo corpo mas você é presa pela mente”. É uma frase que resume metade do livro.
A Invenção das Asas é um livro que rapta o leitor para uma viagem no tempo, em descrições perfeitas de uma época de medo, lutas, dor e preconceito. Um romance sinestésico, que exprime as sensações, a temperatura e os cheiros que cercam todos os personagens. Uma trama histórica, cujas personagens de fato existiram, delineadas com sensibilidade pela talentosa Sue Monk Kidd. É, ainda, um resgate documentado numa escrita irretocável, que apresenta aos leitores a coragem dessas mulheres que viraram o mundo de ponta-cabeça. Creio que todos deveriam conhecer esta história.
Resenha publicada no blog As meninas que Leem Livros:
http://www.asmeninasqueleemlivros.com/2014/06/a-invencao-das-asas-sue-monk-kidd.html