Mariana 04/07/2021que boniteza isso de amá-lo nos seus confins e chafurdar por aquiNa moral, olhem que coisa linda:
"e apesar dessa poeira de pó, de toda cegueira, do aborto dos dias, da não luz dentro da minha matéria, a imensa insuportável funda nostalgia de ter amado o gozo, a terra, a carne do outro, os pelos, o sal, o barco que me conduzia, umas manhãs de quietude e conhecimento, umas tardes-amora brevíssimas espirrando sucos pela cara, rosada cara de juventude e vivez, e uma outra cara de mansa maturidade, absorvendo o que via, lenta, os ouvidos ouvindo sem ressentimento."
A Obscena Senhora D é um livro sobre deus. Ou Deus. Ou o Menino-Porco. Ou o Inominável. Ou a Face Obscura, ou sei lá como Hilda o(a) chama.
Ele é basicamente uma narrativa na forma de fluxo de consciência de uma senhorinha, a Hillé (também chamada Senhora D), que acaba de perder o marido e que é vista por toda sua vizinhança como alguém que "perdeu o juízo" ou que beira à loucura, seja lá o que isso signifique. A própria autora brinca com essa questão da figura do louco ser na verdade a figura mais lúcida. E tem muita lucidez mesmo, quase uma lucidez a la Rita Lee:
"que inteligentes essas pessoas, que modernas, que grande cu aceso diante dos movietones, notícias quentinhas, torpes, dois ou três modernosos controlando o mundo, o ouro saindo pelos desodorizados buracos, logorreia vibrante moderníssima, que descontração, um cruzar de pernas tão à vontade diante do vídeo, alma chiii morte chiii, falemos do aqui agora."
E aí, minha gente, é uma bagunça. É memória pra lá, diálogo pra cá, conversa com vivo, com morto, percepções dos vizinhos sobre ela, lembranças do pai. O que parece é que a Senhora D sempre perguntou muito, durante a vida toda, e continuou perguntando mesmo no período de luto pelo marido. Sobre o sentido da vida e, principalmente, sobre a figura de Deus.
"cuida. não deixa que faça as minhas mesmas perguntas, a casa deve ficar mais clara, casa de sol, entendes? na sombra, Hillé se faz mais sábia, pesa, mergulha em direção às conchas, quer abri-las, pensa que há de encontrar as pérolas e talvez encontre, mas não suportará, entendes? te falo ao ouvido, não há coisa alguma dentro delas"
Eu não posso dizer que gostei da leitura, seria mentira se o fizesse, e posso dizer que compartilho do sentimento de um colega de resenhas que disse em algum lugar neste site: o livro precisa de fôlego. Mesmo tendo menos de cem páginas. No entanto, sem dúvida é uma experiência literária. Tentar entender o que Hilda diz, e, mais que entender, apreciar como ela diz, me faz querer reler o livro em outra época e com outra cabeça. Recomendo!