Gustavo.Romero 07/06/2018
Lorca e o universo feminino
Antecipando a temática que seria explorada em profundidade n' "A casa de Bernarda Alba", e "Yerma" Lorca nos oferece um marcante painel da realidade feminina. O autor utiliza fartamente, como de praxe, os elementos ligados à tradição regional para relatar preocupações de ordem universal. O peso dos costumes e dos preconceitos disseminados se faz sentir crescentemente conforme avançam os atos, culminando num final brusco, inesperado e incrivelmente complexo. Nesses atos, presenciamos Yerma ser esmagada pela tradição patriarcal / macho-cêntrica, pela maledicência, pelo preconceito de outras mulheres e pela solidão, tudo isso promovido por e em torno de uma falácia que aflige muitas mulheres até os dias atuais: o reconhecimento da individualidade feminina apenas por meio da vivência da maternidade.
Não se trata do tratamento dispensado à maternidade em tempos antigos, quando a figura feminina, empossada do privilégio da maternidade, era a representação absoluta da fertilidade e do poder criador da Natureza. Yerma já testemunha a concepção de maternidade corrompida, ligada ao cerceamento da satisfação e plenitude da mulher em função exclusiva da maternidade. Quer dizer, as angústias da personagem, que se relacionam acima de tudo à sua recusa íntima à conformidade social, são pelas mulheres que a cercam e por ela própria agrupadas na forma de "culpa" pela sua suposta infertilidade - esta que, como fica sugerido nas entrelinhas, liga-se em realidade à figura vazia e distante do marido. A construção de Lorca, portanto, é extremamente sofisticada: mutilando Yerma do único recurso feminino que jamais poderá ser alcançado pelo masculino, a maternidade, o autor demonstra numa única tacada um caso particular de opressão - a responsabilização negativa sempre voltada à mulher e a sugestão de que a frustração feminina seria sempre fruto de "futilidades"- e outro geral - as condições de imposição do meio social sobre o indivíduo esvaziam-no de qualquer potencialidade.
Como já apontei na resenha de Bernarda Alba, para mim esse é o recurso de Garcia Lorca que o torna particularmente especial, demonstrando que muitas das vicissitudes que se atribuem ao mundo específico da mulher são resultado não apenas da grotesca postura masculina, mas do desencontro (a princípio natural e salutar) das aspirações individuais, que ao invés de se confrontarem em síntese tornam-se extremas antíteses, comumente reconhecidas no desrespeito generalizado do ser humano por sua própria espécie.