Andreia Santana 19/03/2024
Duas leituras da África Lusófona
Um livro de Angola e outro de Moçambique, dois países africanos lusófonos. Ou seja, que têm o português como idioma oficial. Fora a língua imposta em comum, esses países também compartilham as heranças malditas do colonialismo e, embora as histórias de Pepetela, o angolano, e de Aldino Muianga, o moçambicano, não sejam especificamente apenas sobre as mazelas criadas e legadas pelos portugueses nas paisagens e culturas africanas, elas aparecem, ora de forma direta, palpável; ora como resquício, sombra.
Pepetela, em suas obras, geralmente, fala da história contemporânea de Angola, do processo de independência, da guerra civil, da reconstrução do país.
Muianga, por sua vez, volta muito o seu olhar para as regiões rurais e os choques culturais entre as tradições ancestrais e patriarcais e a modernidade em Moçambique.
Os dois escritores, no entanto, embora foquem nas questões sociais – impossível não fazê-lo no contexto histórico de cada um desses países – querem cantar também uma outra África que não apenas aquela que foi drenada e extenuada por séculos de invasões e escravizações. Eles falam da África que sobreviveu e se reconfigura a partir do antes, durante e depois do processo de colonização.
Sem abrir mão do senso crítico, usando o humor e a ironia como ferramentas de reflexão, Pepetela e Muianga contam sobre as culturas de Angola e de Moçambique, os costumes, tradições redesenhadas, modernidades, orgulhos e sabedorias ancestrais que se juntam com as tecnologias e hábitos contemporâneos.
Os dois narram com maestria e um jeito todo próprio de contar histórias, como se cantassem – na cadência bastante africana -, das labutas do povo, da ostentação dos poderosos, da riqueza opulenta derivada do petróleo, da urbanização tardia e veloz, dos anseios da juventude, dos amores e decepções, dos servidores públicos que tentam levar vantagem a partir de seus cargos, das multinacionais que se comportam, ainda, como os antigos colonos, angariando os melhores cargos sob a desculpa de que ‘ainda não há mão de obra qualificada’ nessas jovens nações que conquistaram suas independências no século XX, ambos nos anos 1970.
Viajar pelas páginas desses autores é encontrar similaridades também com o que o Brasil herdou tanto da África quanto de Portugal. Para um leitor brasileiro, determinados aspectos das culturas urbana – seja ela central ou periférica – e rural de Angola e de Moçambique é bastante familiar, está no nosso sangue, no DNA que atravessou o Atlântico.
Ler Pepetela e Muianga é fazer a travessia de volta e é sempre bom a gente olhar para todos os lugares de onde veio…
Sinopses:
O tímido e as mulheres – Romance que conta a história de Heitor, um jovem filho da classe média alta de Angola, escritor iniciante, de natureza tímida e retraída, que anda às voltas com uma desilusão amorosa e novas tentativas de conquista. Heitor é o que aqui no Brasil chamaríamos de ‘filhinho de papai’, privilegiado, superprotegido, com facilidades que não chegam ainda a todos os angolanos. E ele tem consciência disso, embora como boa parte dos jovens de sua geração, não consiga sair da barra da saia da mãe. Ao mesmo tempo em que vai narrando as conquistas e decepções de Heitor, o quase triângulo amoroso com a radialista Marisa, casada com o brilhante professor Lucrécio, um homem amargurado pela condição de cadeirante, o livro descortina a Angola contemporânea, as diferenças sociais, o avanço da especulação imobiliária em Luanda, o choque entre os da ‘cidade’ e os que vivem nas periferias do progresso.
A noiva de Kebera – Livro de contos que reúne seis histórias protagonizadas por trabalhadores pobres, mulheres, idosos, crianças e outros marginalizados e desfavorecidos. O conto que dá nome ao livro é uma preciosidade que questiona as tradições patriarcais e foi inspirado em um caso real acompanhado pelo autor, que também é médico. Na história, Ma-Miriam, noiva do guerreiro Kebera, fica viúva e, em honra do morto, a família dele a convence de que ela jamais deverá se envolver com outro homem, guardando fidelidade eterna ao morto. Outro conto comovente do livro é Dois muda quatro ganha, que narra uma partida de futebol entre a meninada pobre de um bairro periférico de Maputo. O autor vai entrelaçando a narração do jogo no campo de várzea com fatos ocorridos na vizinhança, todos pontuados por violência e tragédias.
Fichas Técnicas:
O tímido e as mulheres
Autor: Pepetela
Editora: Don Quixote/Leya,
293 páginas
R$ 29,90 (livro fisico, Amazon), e-book disponível para assinantes do Kindle Unlimited (assinatura custa R$ 19,90 por mês) ou e-book para ler de graça, via empréstimo, no @biblion.app
A noiva de Kebera
Autor: Aldino Muianga
Ilustrador: Dan Arsky
Editora: Kapulana, 2016
160 páginas
R$ 34,18 (livro físico, Amazon), R$ 27,90 (e-book Kindle) ou e-book para ler de graça, via empréstimo, no @biblion.app
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*Livros lidos para o desafio #50livrosate50anos, uma brincadeira que criei para comemorar meu aniversário. Em abril de 2024 eu faço 50 anos. A ideia é ler 50 livros até lá e, se possível, resenhar ou fazer algum breve comentário aqui no Skoob e no Instagram, sobre cada um deles. O tímido e as mulheres e A noiva de Kebera são, respectivamente, os livros 25 e 26 do desafio. No total, até agora, 31 já foram lidos, tem outros 19 na fila de leitura e cinco dos lidos aguardam postagem.
*Texto replicado na página do livro A noiva de Kebera
site: https://mardehistorias.wordpress.com/