spoiler visualizarKrebs 17/11/2017
MIRANDA, Ana. Amrik : romance / Ana Miranda ? São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 208 páginas.
O romance Amrik da escritora cearense Ana Miranda, publicado em 1997, retrata a saga da imigração libanesa no Brasil vista pelos olhos da protagonista Amina, uma jovem dançarina que partiu do Líbano acompanhando seu tio cego Naim com destino à América, ou Amrik, como eles costumavam pronunciar. O alvo era a América do Norte, mas acabaram por se fixar no Brasil, onde testemunharam o surgimento da famosa Rua 25 de Março, em São Paulo. A edição considerada nesta resenha crítica é a 2ª edição, de 2011, da editora Companhia das Letras.
Ana Maria de Nóbrega Miranda nasceu em 1951 em Fortaleza (CE). Passou a infância em Brasília, mudou-se para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo, retornando ao Ceará aos cinquenta e cinco anos. Estreou na literatura com poesias em 1978. Boca do Inferno, seu primeiro romance lançado em 1989 foi traduzido para mais de oito idiomas, além de receber o prêmio Jabuti na categoria revelação. Miranda ganhou notoriedade, experienciou-se como pintora, poeta, atriz e romancista. Com 29 livros publicados, 11 trabalhos como atriz e 8 valorosas premiações, suas principais obras são Boca do Inferno, O Retrato do Rei, Amrik, A última Quimera e Dias & Dias.
Admiradora de Lewis Carrol (de Alice no País das Maravilhas), a autora admite que desde criança tem encanto por diários. Talvez essa influência tenha originado a composição estrutural do romance Amrik, formado de 154 curtos textos. Miranda também obteve influências do escritor Rubem Fonseca, principalmente para o primeiro romance.
Amrik, como já mencionado, é composto de 154 textos curtos de no máximo uma página, cada um deles representando um capítulo, os quais se encontram agrupados em 11 partes. Tais capítulos são constituídos de apenas um parágrafo, no qual inexistem pontos finais marcando a separação de períodos, fazendo com que a leitura seja rápida, sem muitas pausas. Aliás, a pontuação, de forma geral, é muito escassa, sendo que a autora abusa das enumerações ao longo de todo o romance quase sempre sem fazer uso de vírgulas.
Narrado em primeira pessoa por Amina, a linguagem utilizada é coloquial com abundantes onomatopeias e palavras estrangeiras, principalmente árabes, cujas definições podem ser encontradas em um glossário disponível ao final do livro. O efeito obtido é de aproximação da oralidade e fluxo de memória, isto é, passa a impressão de que se está acompanhando a narrativa diretamente do pensamento da protagonista. A leitura do texto, confusa no início, pode exigir um esforço extra do leitor. Entretanto, após alguns capítulos, a tendência é que ele se acostume às inovações linguísticas e a leitura se torne fluida, efeito facilitado também pelo tamanho reduzido dos capítulos. Cada um deles possui títulos curtos, representados sempre por um sintagma nominal, que podem ser expressões em árabe, nomes de pratos ou algum pequeno detalhe citado no capítulo, mas que normalmente não o resume, transmitindo no máximo uma vaga ideia do seu conteúdo. No primeiro capítulo, por exemplo, intitulado Cortesã de Trebesta, Amina, ao receber uma proposta de casamento, imagina como seria a vida de casada e cita algumas mulheres famosas da literatura árabe com as quais estabelece uma comparação com o papel de esposa, dentre elas Xarazade e Naziad, a Cortesã de Trebesta.
O enredo inicia-se quando Naim Salum pergunta à sua sobrinha Amina se ela aceita se casar com o mascate Abraão. Tal proposta provoca na moça uma profusão de memórias desde a sua infância no Líbano até aquele momento. Amina se recorda da vila em que morou no Líbano com a família, exceto a mãe. Com o abandono da mãe, o pai Jamil torna-se rancoroso com todas as mulheres, além de condenar que a filha dance, ensinada pela avó Farida. Então seu pai a rejeita, por se parecer com sua mãe, e a manda para a Amrik (América) junto ao seu irmão, tio de Amina. Na viagem eles são separados, ela ficando na América do Norte e o tio Naim ?despachado? para América do Sul. A viagem foi sofrida. Eles possuíam a expectativa de um navio moderno, porém a realidade foi uma embarcação velha e superlotada, como ela descreve: repleto de insetos, ratos, calor, umidade e muitas pessoas vomitando (p.28). Finda aqui a parte um da obra.
A parte dois retrata a chegada de Amina à América do Norte. Em Beirute eles foram separados, e tio Naim, cego e portanto indesejado na América do Norte, viria a desembarcar no porto de Santos, Brasil. Amina ganha meios de sobrevivência através da dança e todas as novidades da América a fazem esquecer por um tempo de suas origens e sua família. Porém, logo a realidade se apresenta para ela, com muito trabalho e pouco pagamento. Amina fica desempregada e passa a morar na rua, perambulando entre cortiços e ganha arduamente alguma cifra, dançando eventualmente. Ela troca cartas com seu tio Naim, que sinaliza a possibilidade de vir para São Paulo. A princípio ela resiste, mas a solidão a faz reconsiderar. A partir desse ponto, a narrativa envereda no ambiente urbano de São Paulo em crescimento, a profusão de imigrantes, o comércio, retratando principalmente a Rua 25 de Março.
A quarta parte da obra narra a vida com Naim, com certo resgate da cultura árabe através da culinária e das leituras e ensinamentos do tio. Na quinta parte, Amina muda-se para um sobrado na Rua 25 de Março. Apaixona-se platonicamente por Chafic, um mascate nômade, mas não chega a conhecê-lo, apenas o vê de longe. Da sétima parte em diante, a narrativa apresenta a história pessoal de Amina, e a característica cíclica: a obra termina onde começou, com seu tio perguntando se ela aceitaria casar com o mascate Abraão, que retornou rico da América do Norte. Na décima primeira e última parte, após muito refletir e fantasiar sobre a proposta, Amina parece finalmente decidir o seu destino.
Romance histórico por natureza, Amrik tem como pano de fundo a imigração árabe no Brasil e a origem da famosa Rua 25 de Março, em São Paulo. Ao longo do desenrolar da narrativa, a heroína aproveita para exaltar os aspectos culturais da cultura árabe, dentre os quais se pode destacar a dança, a literatura, e principalmente, a culinária.
Na parte 1 ?Duas taças de árak?, a personagem Amina, por meio de suas lembranças, faz um retorno à sua infância numa aldeia do Líbano e, consequentemente, resgata os aspectos culturais de seu povo.
A dança, embora condenada pelo pai de Amina, foi ensinada a ela por sua avó Farida. Mais do que simples movimentos do corpo, a dança representa o ápice da sensualidade feminina, que pode ser capaz de seduzir os homens e arrastá-los ao abismo. Segundo Amina, chamada Serpente do Nilo, em capítulo de mesmo nome, ?há uma arte em harmonizar os gestos, a forma ideal, em descobrir a vocação de cada parte do corpo, o mais perfeito uso das mãos, do queixo, dos ombros, dos pés, o espaço que os quadris devem ocupar, em que lugar se joga a transparência de um véu, uma arte de espaço de espírito de anatomia, a dança tem sua alma? (MIRANDA, p. 20). De fato, é por meio da dança que Amina virá a conquistar o coração do mascate Abraão.
A literatura, por sua vez, é representada pelo personagem Naim, o tio culto de Amina, porém cego, para quem ela lia com frequência. Eles preferem a leitura de livros árabes, a fim de manter o vínculo com a sua cultura de origem. Para eles, ?a literatura árabe é a alma árabe?. Mas, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, ela não se limita às Mil e Uma Noites, sendo muito mais rica.
O traço cultural mais palpável na obra com certeza é a culinária. Ela se faz presente em inúmeras sequências narrativas, sendo associada a sentimentos, como o amor, o afeto e até mesmo a sensualidade. É perceptível que a culinária provoca no povo libanês, em especial na protagonista Amina, o despertar não só dos sentidos sensoriais, mas de significados profundos, inclusive de empoderamento feminino. O livro parece estar impregnado de aromas e sabores, repleto de nomes de pratos árabes, cujas definições estão disponíveis no glossário ao final da obra.
Curiosamente, a escritora Ana Miranda não é descendente de libaneses e nem sequer tinha estado no Líbano até a publicação do romance. Sua obra baseou-se então em pesquisa e em contato com seu marido, ele sim descendente de libaneses. Pesquisa social e documental são práticas comuns para as obras de Miranda.
Trata-se então de uma obra imprescindível para os leitores com interesse histórico pela imigração árabe no Brasil, bem como pela cultura árabe. É importante destacar, porém, que, por ser uma obra de ficção, não possui compromisso com a fidelidade dos fatos e não pode ser tomado como documento. Além do aspecto histórico e cultural, o enredo ficcional centralizado na personagem Amina é interessante, repleto de aventuras, paixões e reviravoltas, semelhante a uma novela, sendo atraente a um público que se interessa por uma boa história.
Além disso, a forma como se desenrola a narrativa, marcada pelo fluxo de memória de Amina e com um diferenciado estilo linguístico, embora no início dificulte e possa até desencorajar um leitor inexperiente, acaba se tornando um ponto forte do romance, um aspecto que o distingue dos demais e coloca em evidência o talento da escritora Ana Miranda.
Cópia proibida.